Home TVEpisódio Crítica | Doctor Who: Risadinha (The Giggle)

Crítica | Doctor Who: Risadinha (The Giggle)

Bobagens e traquinagens.

por Luiz Santiago
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Com quê então haveria, nesta trilogia de 60 anos de Doctor Who, algum episódio que indicasse, numa esfera bem básica, a ciência de uma comemoração importante, respeitando idealmente o cânone da aniversariante! Dois doutores, um vilão clássico, uma companheira clássica, uma organização clássica… sim, a estrutura de Risadinha (The Giggle), tem os componentes corretos e o tom agregador que deveria ter sido o da trilogia inteira! Em compensação, reafirma o meu profundo temor diante dessa nova Era do show: a percepção muito clara de que a Disney não está apenas injetando muito dinheiro na série, mas controlando todos os seus aspectos de construção. E a contar pelo que tivemos até agora, eu diria que isso é potencialmente muito ruim — a não ser que haja uma revolução estrutural, com plena liberdade criativa na maneira como Russell T. Davies irá assinar a jornada do 15º Doutor, o que eu duvido muito. Afinal de contas, é da Disney que estamos falando, não é? Se já havia problemas antes, com a BBC, agora com a maldita rata no comando parcial da série, a coisa fica mais complicada. Mais impositiva. Mais… cara de “coisa da Disney“. E de novo: isso é potencialmente muito ruim.

Neil Patrick Harris dá vida ao Toymaker, em uma versão mais despojada e que aparentemente conseguiu penetração em nosso Universo a partir de uma ação supersticiosa do Doutor, em Wild Blue Yonder, com o sal jogado no chão. Como isso é capaz de fazer sentido (não faz!), só os neurônios de Davies fingem que sabem, mas o fato é que o roteiro do atual showrunner realiza aqui as escolhas certas para o início dos jogos: o vilão é conhecido por manipular a vida através de uma macabra relação lúdica com as pessoas, e sua maneira de atingir muita gente, em nossa realidade, vem através das telas, às quais todo mundo tem acesso hoje em dia. Até o conteúdo da brincadeira mortal é certeiro, colocando no centro das atenções o ódio, a ânsia por estar certo, por discutir, por querer a supremacia da vontade ideológica particular sobre a vontade e o pensamento dos outros. É uma exposição perfeita do comportamento de massa no século XXI, e condiz com o propósito do Especial. Então o escritor olhou para toda essa potência, para essa pérola de conceito e personagens que tinha em mãos e pensou: “como eu posso usar isso aqui da forma mais decepcionante possível? Ah, sim, já sei!”. E eis que nasceu The Giggle.

O ponto mais grave dessa dominação-Disney é que a rata não tem absolutamente nenhuma preocupação com a série e suas particularidades. O estúdio está disposto a pisotear a essência do show para forçá-lo a se enquadrar no “modelo disneylândico de fazer as coisas” — e sim, eventualmente pode aparecer alguma obra-prima no caminho, mas, a longo prazo, o preço da descaracterização do original é tão alto, que chega a um ponto onde não é mais possível reconhecer a fonte: Star Wars e Universo Cinematográfico Marvel estão aí para provar que isto é um fato. E não, “descaracterização” não é sinônimo de “evolução” e nem de “mudança“. Vamos colocar as coisas em seus devidos lugares?

Em The Giggle, o tal “novo caminho” é sentido no ponto mais basilar da coisa, na construção do roteiro com base num contexto e numa proposta específica. Lá em 1966, quando o 1º Doutor enfrentou esse mesmo vilão, no arco The Celestial Toymaker, havia um sentido para que certas coisas bobinhas fizessem parte da aventura. Hoje, num contexto de aniversário de 60 anos, de regeneração de Doutor e finalização de uma fase da série para o início de outra, tratar o Toymaker de forma medíocre, com propostas de jogos aquém da capacidade de um Ser com o poder que ele tem, e com uma derrota tão vergonhosa (a bolinha que escapou da mão!), não há nada que justifique tanta bobagem. É um baixo nivelamento de escrita mesmo. E o pior de tudo é que isso nem pode ser caracterizado como a pior parte envolvendo o vilão ou o cerne do enredo nesta trilogia de aniversário. Tem coisa pior!

O Newton meio indiano que criou a “mavidade“… ficou por isso mesmo. Piadinha. Não era um truque do Toymaker! E o roteiro nem se deu o trabalho de dizer que estava brincando com realidades alternativas ou trabalhando revisionismo histórico de forma divertida. Nada disso. É o cânone desse Universo e nós que lutemos com isso. Vocês conseguem perceber o quanto é desrespeitoso conosco? Agora, surge uma bi-regeneração com o 14º Doutor se aposentando junto à família de Donna. Basicamente uma disposição forçosa de algo tão essencial para Doctor Who (a necessidade de dizer adeus a um Time Lord/Lady e dar as boas-vindas ao próximo) apenas para… criar um possível spin-off?

Ah, mas ninguém reclamou do Curador, que era uma versão aposentada do Doutor!“. Ninguém reclamou porque aquele roteiro foi bem escrito! A situação era propícia, o mistério não interferia na essência de nada no momento (ou no cânone), não estava posto goela abaixo do público, não veio à guisa do sacrifício de um episódio importante e o mistério envolto na questão era perfeita e facilmente explicável, sem malabarismos ou roteirismos tacanhos para dar a ele alguma aparência de sentido. Por isso é que ninguém reclamou. Porque foi algo coerente e com sentido dramático e narrativo naquele momento da série. O que não é, nem de perto e nem de longe, essa aposentadoria do 14º Doutor, que aparentemente voltou com o mesmo rosto só para ficar perto de Donna e “voltar para casa“. Santo Rassilon! Anos atrás, os detratores de Steven Moffat, que faltaram fazer campeonato de origami com os intestinos quando os eventos de Face the Raven foram temporariamente modificados, hoje compram de bom grado essa palhaçada de RTD, que simplesmente não sabe dizer adeus. Para quê trazer David Tennant de volta e terminar a reencarnação dele DESSE JEITO? Se era para cavar um cenário à la O Curador, que fosse num episódio inteiramente dedicado a isso, com um contexto, cenário, tom, execução, coesão e atenção necessárias a tal projeto. Não nessa imposição marqueteira, jogada de qualquer jeito e sem nenhum suporte de explicação para o público. Uma vergonha sem par.

O que impediu que esse episódio estivesse abaixo da mediocridade foi o seu primeiro e segundo blocos, mais a presença de uma pessoa muito especial. A apresentação do Toymaker é muito boa, o estabelecimento da ameaça com as telas e a TV são ótimos, a introdução e atuação de Mel (Bonnie Langford) na UNIT é de aquecer o coração de qualquer um, e a atuação de Kate e Shirley como agentes em prol da salvação da Terra, é muito boa. Sem contar que Murray Gold estava inspiradíssimo quando compôs a trilha sonora deste episódio, com um tema mais lindo que o outro.  Destaco também a direção de arte para o excelente labirinto de portas e todas as cenas com os bonecos, muito bem dirigidas por Chanya Button. Mas a cereja do bolo foi o espetacularmente caloroso e magnético Ncuti Gatwa como 15º Doutor. Eu me dispus a esquecer a vexatória escrita de RTD em todo o bloco final do episódio porque a atuação de Gatwa me impedia de odiar as cenas. Se resta em mim uma nesga de esperança de que a Nova Era possa dar certo — a despeito dos desmandes e engessamento horrendos da Disney –, ela vem pelo fato de que teremos um ator que claramente está colocando a alma nesse papel. Não há nada na presença desse homem em cena que seja dramaturgicamente questionável. Até na (pouca) roupa a produção acertou em cheio, como introdução! A manutenção do sotaque é outro ponto positivo, além da exposição de uma figura gentil, amorosa e energética que agora assume a TARDIS com uma jukebox e um novo plano de vida.

Não diria que a sessão de The Giggle é ruim, mas fortemente decepcionante. A nova produção de Doctor Who aceitou fazer da série um compilado de mistérios inúteis e naturalizou a perda de oportunidades para explicar coisas óbvias, de forma ideal. Com o Toymaker em cena, todas as bobagens de A Fera Estelar, Imensidão Azul e do próprio Risadinha poderiam ser encerradas sem grandes problemas e sem a aparição de perguntas idiotizantes ou problemas desnecessários num momento da série em que só queremos e precisamos de boas histórias. Mas o que temos é algo bem a cara da Disney mesmo: portas abertas para insatisfações que farão divulgação gratuita via polêmicas infrutíferas e possibilidade de gerar variantes de lucro, sem atentar para a qualidade, em cima da série. Minha única consolação é que eu terei uma hora para apreciar Ncuti Gatwa trabalhando, tentando dar algum sentido a esse show e carregando o Especial de Natal nas costas. Já o resto… Russell T. Davies, BBC e Disney estão protagonizando a nova Era de dementadores de Doctor Who (que os céus de Gallifrey me ouçam e me façam estar errado!). Uma coisa é certa: de Chris Chibnall para cá, depois de três Especiais da tal “Nova Era“, não tivemos praticamente nenhuma mudança verdadeira, e as más escolhas não só continuaram, como se expandiram. Só não vê quem não quer… ou prefere continuar se enganando.

Doctor Who: Risadinha (The Giggle) — Reino Unido, 19 de Dezembro de 2023
Direção: Chanya Button
Roteiro: Russell T. Davies
Elenco: David Tennant, Catherine Tate, Neil Patrick Harris, Charlie de Melo, John Mackay, Ross Gurney-Randall, Alexander Devrient, Ruth Madeley, Jemma Redgrave, Bonnie Langford, Glen Fox, Tim Hudson, Aidan Cook, Nicholas Briggs, Lachele Carl, Leigh Lothian, Luke Fetherston, Karl Collins, Jacqueline King, Yasmin Finney, Ncuti Gatwa
Duração: 62 min.

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