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Crítica | Doctor Who: País das Maravilhas, de Michael Chadbourn

por Rafael Lima
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Equipe: 2º Doutor, Ben, Polly.
Espaço: São Francisco, Distrito de Haight
Tempo: Janeiro de 1967

O movimento da contracultura da década de 60 foi muito característico não só por seu papel na luta pelos direitos civis, na revolução sexual e no movimento antibélico contra a guerra do Vietnã, mas também por sua visão de um mundo mais justo e cheio de amor, que diferia da perspectiva mais cínica e mesmo niilista de outros movimentos contraculturais que se sucederam. O distrito de Haight, localizado em São Francisco, Califórnia, foi um dos maiores polos da cultura hippie dos anos 1960, e serve de palco para a noveleta País das Maravilhas, escrita por Mark Chadbourn como a sua contribuição para a série literária de Doctor Who na editora Telos.

A trama acompanha Jessica “Summer” Willamy, que relembra os traumáticos eventos de janeiro 1967 em São Francisco, quando o festival Human Be-In serviu como prelúdio do Verão do Amor. Uma Summer adolescente chega a São Francisco para tentar encontrar o seu namorado desaparecido, Denny. Chegando ao Haight, ela acaba conhecendo Ben, Polly, e o Segundo Doutor, recém-chegados ao local. Logo, o grupo descobre que Denny não foi o único a sumir, e que esses desaparecimentos podem estar conectados a uma leva de “ácido ruim” conhecido como Blue Moonbeams, que se espalhou pelo Haight, indicando uma grande conspiração de intenções desconhecidas.

País das Maravilhas revela-se um romance muito intrigante, especialmente devido a sua ambientação e a visão apresentada para o movimento da contracultura da década de 60 (o movimento hippie, principalmente). Através da narração em retrospecto feita pela protagonista, o autor lança um olhar que é nostálgico, mas também bastante crítico ao movimento contracultural dos anos 60. Existe um amargor na narração da Summer madura, que lamenta a falha da assim chamada “revolução do amor” e de seus ideais, o que dá um ar melancólico para a obra. Esta sensação torna-se ainda maior quando comparamos a narradora com a sua versão mais jovem, que inicialmente marcada por ter testemunhado o assassinato do presidente Kennedy, e apaixonada tanto pelo namorado quanto pelo sonho da paz mundial, mostra-se como uma garota muito mais idealista e inocente em comparação à sua cínica e descrente versão futura que narra a história.

A ambientação é outro grande acerto do livro. O autor faz do distrito do Haight um universo à parte, com seus cenários de alegria e de pesadelos. Fazendo jus a alcunha de “País das Maravilhas” que recebeu de Summer, o Haight é posto nas páginas como um microcosmo que traz o melhor do movimento contracultural sessentista, com rodas culturais de músicas e poesia, mas também seus aspectos mais sombrios e menos idealistas, assim como também as forças externas que tentavam derrubar o movimento.

Chadbourn vale-se de Ben e Polly na história para dar vazão aos conflitos de sua protagonista. Muitos esquecem, mas quando foi criado no arco The War Machines, o casal servia para retratar a dualidade presente na juventude da época, com os aspectos mais liberais personificados em Polly e os mais conservadores presentes em Ben. Essa dicotomia acabou se perdendo ao longo da série, mas o autor a utiliza aqui como uma caixa de ressonância para o que a protagonista acredita ser certo dentro do liberalismo do movimento hippie através de Polly, mas também suas reservas, que ganham voz no conservadorismo de Ben.

Quanto ao Doutor, fiquei com sentimentos conflituosos quanto a participação do Time Lord na narrativa. Chadbourn configura a sua noveleta quase como uma Doctor Lite (tipo de trama com participação reduzida do Doutor e voltada para um personagem “comum”). Assim sendo, o 2º Doutor passa a maior parte do tempo em “missões paralelas” deixando Summer aos cuidados de seus companions e, quando está presente, é retratado de forma distante e errática, concentrado demais no problema que se desenrola para prestar atenção nas angústias da protagonista. Alguns momentos ainda são Troughton puro, como aquele em que o Segundo Doutor cria uma festa em frente a uma boate ao tocar sua flauta, ou a linda conversa que tem com Summer perto do clímax sobre a frequência do bem e do mal no Universo. Embora a versão de Patrick Troughton pudesse muitas vezes ser bem fria e pragmática, senti que o autor não captou bem o personagem. Fiquei com a incômoda sensação algumas vezes de estar lendo uma história estrelada pelo Doutor errado, com as atitudes deste Time Lord se encaixando melhor talvez em sua quarta ou sétima encarnação.

Em termos de enredo, Mark Chadbourn cria um mistério inicial interessante em torno do desaparecimento do namorado de Summer, e suas conexões com a leva de “ácido ruim”, à medida em que os indícios de uma presença alienígena no local vão surgindo em doses homeopáticas. Após esse início, o autor acaba tendo alguns problemas de ritmo com a narrativa, acelerando-se demais em alguns pontos, tirando até mesmo o impacto de algumas boas reviravoltas, ainda que consiga criar uma atmosfera de perigo iminente digna de nota, vide o momento em que Summer testemunha uma jovem sofrendo uma bad trip dos efeitos do Blue Moonbeans, ou mesmo uma terrível tentativa de estupro que sofre ao longo de suas investigações. Deve-se alertar que este é um livro bastante maduro da série em termos de violência e linguajar, mas que em momento algum soa apelativo.

Deve-se elogiar ainda o quão bem o autor abraça a natureza psicodélica que a narrativa assume a certa altura, sem tornar a leitura incompreensível. O terceiro ato pode soar um pouco problemático para alguns, pois como Chadbourn não abandona em momento algum o ponto de vista de Summer, a resolução do conflito que move a trama se dá longe dos olhos da protagonista, e ainda por cima, ficamos com a sensação de que o time da TARDIS simplesmente some da história. Deve-se frisar, entretanto, que isso não é um descuido do autor e sim uma opção, pois nota-se que ele está muito mais interessado nos conflitos pessoais de sua personagem principal do que em como o Doutor e seus companions vão salvar milhões de vidas dessa vez.

Ao término da leitura, País das Maravilhas nos deixa com uma sensação agridoce. É uma obra que consegue olhar sem julgamentos para esse conturbado período dos anos 60, escapando das armadilhas de glamourizar ou de estereotipar um movimento que teve um papel fundamental na cultura ocidental. Com um pouco mais de cuidado na condução de seu enredo, e uma firmeza maior na construção do Doutor escolhido, tinha tudo pra ser uma experiência fora da caixa pra ninguém botar defeito. Mas ainda assim, é muito difícil ficar indiferente a esta noveleta de Mark Chadbourn. Sua conclusão inicialmente sombria nos traz à memória a icônica frase de John Lennon “O sonho acabou”. Mas como Summer Willamy descobre, o fato de um sonho acabar, não significa que ninguém se importa. Sonhos acabam, mas sempre há sonhadores.

Doctor Who: País das Maravilhas (Wonderland)- 24 de Abril de 2003.
Autor: Michael Chadbourn
Publicação: Telos Publishing
120 Páginas.

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