Equipe: 3º Doutor, Jo, Liz
Espaço: Rússia (São Petesburgo)
Tempo: 1916
Grigori Rasputin foi um dos homens mais intrigantes da história da Rússia. O monge de origem humilde, tinha um efeito quase hipnótico em seus seguidores, a ponto de sua influência ter se infiltrado na Família Real Russa. Além disso, sobreviveu a várias tentativas de assassinato consecutivas, até uma finalmente dar certo. A aura quase sobrenatural que cerca essa figura a torna perfeita para uma história de Doctor Who, e, de fato, nota-se até certa semelhança entre Rasputin e um dos vilões do Show, o Mestre, como obviamente The Power Of The Doctor percebeu. Dito isso, David A. McIntee, em O Salário Do Pecado, adotou outra abordagem para Rasputin no universo da série, em uma história onde os únicos elementos Sci-fi são a TARDIS e seus tripulantes.
Na trama, situada entre The Three Doctors e Carnival Of The Monsters, o 3º Doutor convida sua ex-assistente, Liz Shaw, juntamente com Jo Grant, para um voo de testes na TARDIS, após a nave tornar-se novamente operacional. Atendendo um pedido de Liz, o Doutor tenta ir para a Sibéria de 1908, para testemunhar a misteriosa explosão de Tunguska, mas ao invés disso, eles se materializam na São Petesburgo de 1916. O trio resolve fazer um breve passeio, mas ao retornar, descobrem que a TARDIS desapareceu, deixando-os presos nesse tempo. Com o país às portas da Revolução Russa, o Doutor, Liz e Jo se veem arrastados para uma terrível conspiração em torno da corte do Czar Nicolau II, enquanto tentam entender o papel do infame Rasputin em tudo isso.
David A. McIntee gosta de misturar os brinquedos da caixa que a mitologia da série oferece. Em A Face Do Inimigo, o romancista envolveu Ian e Barbara em uma aventura da UNIT, enquanto em O Caminho Sombrio, colocou o 2º Doutor para enfrentar o Mestre de Roger Delgado. Em O Salário Do Pecado, ele não apenas junta Liz Shaw e Jo Grant na mesma aventura, como faz dessa aventura um Histórico Puro, algo que gera estranhamento quando falamos da Era do 3º Doutor, não só pelo personagem nunca ter tido esse tipo de história na TV, mas por ter visitado o passado em pouquíssimos arcos. Felizmente, o autor faz com que esses desvios enriqueçam a narrativa sem desvirtuar a atmosfera típica das aventuras do 3º Doutor, ao criar uma dinâmica muito interessante entre Liz e Jo, que brinca com os contrastes existentes entre as duas Companions, e mergulha a trama em uma aura típica das histórias de espionagem que têm tudo a ver com o Doutor de Jon Pertwee.
McIntee dá para a trama uma atmosfera de intriga apropriada para a história que está contando, com forças contra e a favor do Czar atuando nos bastidores, além de interesses internacionais que também atuam no país. O autor lida bem com esse aspecto da história, não permitindo que o leitor confie completamente nos personagens secundários, mas sem tornar a leitura confusa, como ocorre com muitas obras que tentam manobras parecidas. O autor divide o trio principal em diferentes núcleos durante parte da obra, deixando o Doutor para lidar com o serviço secreto russo, Liz envolvida com a família real e Jo lidando com Rasputin, com eventuais intercâmbios entre esses núcleos. Em termos de construção de mundo, o autor faz um ótimo trabalho em tornar vívida a sua visão de São Petersburgo, e suas paisagens gélidas, com uma prosa imagética capaz de evocar a opulência das propriedades da família real, e a hostilidade dos bares da cidade. Há também um trabalho competente na forma como o autor descreve as passagens de ação apresentadas pela história, desde um tiroteio no bosque, passando por uma perseguição no telhado de um trem, tornando-as emocionantes, sem serem confusas para o leitor.
Ao trazer Liz e Jo para a mesma aventura, o autor joga luz sobre as diferenças entre as duas, e em como elas se relacionam com o Doutor. Liz percebe que nunca foi tão próxima do Doutor quanto Jo, já que o Time Lord se sente mais confortável em mostrar o seu lado mais vulnerável para a garota. Por outro lado, Jo percebe que o Doutor é mais direto com Liz do que jamais foi com ela, não dando à cientista o tratamento levemente condescendente que muitas vezes reservou a ela. Com isso, McIntee cria um caso curioso para o motivo do porquê Liz não poderia ser uma Companion de longo prazo para o 3º Doutor, assim como pavimenta a jornada de amadurecimento que Jo teria na 10ª temporada da Série Clássica. Mas uma das coisas que mais chama a atenção no romance é o retrato que o autor faz de Rasputin. Era fácil fazer do Monge uma figura puramente vilanesca, mas Mclntee faz de Rasputin um personagem muito mais complexo, mostrando o infame Rasputin como um hedonista controverso, mas que honestamente sonha com o melhor para a Rússia, independente do que possa lhe acontecer. De fato, o autor transmite para o leitor o fascínio que Rasputin provocava naqueles à sua volta, e consegue isso principalmente ao adotar o ponto de vista de Jo.
Em muitos aspectos, Jo Grant foi uma Companion criada como um aceno de Doctor Who para os movimentos contraculturais dos anos 60. A forma como Rasputin conduzia o seu movimento possuía muitos pontos de convergência com a contracultura que originou Jo, logo, não é de se surpreender que ela nutra alguma simpatia pela filosofia do infame Monge Louco. Ao mesmo tempo, o autor é sábio o suficiente para não pintar a companheira como uma deslumbrada, sendo capaz de ver tanto os pontos de valor nas ideologias e intenções de Rasputin quanto os lados mais sombrios e autoritários, vide a lascívia misógina que guiava boa parte do comportamento dele. É curioso, portanto, que em suas conversas com Rasputin, Jo seja remetida tanto ao Doutor quanto ao Mestre, duas figuras fascinantes, mas com bases morais diametralmente opostas.
Mas um dos aspectos mais interessantes dos Históricos Puros é ver como a narrativa vai lidar com os aspectos históricos da trama, sem apelar para monstros alienígenas. No caso, o grande evento histórico aqui é o lendário plano de assassinato contra Rasputin, que ficou famoso pela aparente indestrutibilidade da vítima, que foi envenenada, baleada, esfaqueada, e afogada, até finalmente morrer. McIntee reconhece o aspecto inerentemente cômico, mesmo que sombrio, em um homem sobreviver a tantas tentativas de homicídio consecutivas, sendo bastante inteligente também a forma com que o autor articula os personagens da série nesses eventos de forma divertida, mas sem soar forçado. Ao mesmo tempo, O Salário Do Pecado entende o peso que os personagens carregam ao serem testemunhas desses eventos históricos, chegando até a influenciá-los por ação ou omissão. Isso gera algumas passagens de drama genuíno e intensos dilemas morais, com destaque para o encontro final entre o Doutor e Rasputin.
Com O Salário Do Pecado, David A. McIntee entrega um drama histórico envolvente sobre o fim do período czarista, lançando um olhar complexo sobre uma das figuras históricas mais excêntricas do período. O autor articula de forma eficiente os elementos dramáticos e cômicos que cercam o Histórico Puro com os elementos de intriga e ação típicos das aventuras de espionagem da era do 3º Doutor. Além disso, a obra possui um elenco carismático, com o livro nos deixando interessados tanto nos personagens originais que apresenta. quanto no inusitado time da TARDIS que propõe, trazendo dinâmicas instigantes entre as figuras vistas na TV. O Salário Do Pecado foi uma grata surpresa, conseguindo brilhar em sua despretensão, e funcionando bem tanto como romance histórico quanto como uma aventura de Doctor Who.
Doctor Who: O Salário Do Pecado (The Wages Of Sin) – Reino Unido. 1 de Fevereiro de 1999
Autor: David A. McIntee
BBC Past Doctor Adventures #18
Publicação: BBC Books
250 Páginas