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Crítica | Doctor Who: O Homem da Máscara de Veludo, de Daniel O’Mahony

A primeira noite de Dodo Chaplet.

por Rafael Lima
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Equipe: 1º Doutor, Dodo
Espaço: Paris (Realidade Alternativa)
Tempo: 1804

Vamos falar sobre Dodo Chaplet, Companion do 1º Doutor vivida por Jackie Lane na 3ª temporada da Série Clássica. Introduzida de forma abrupta no arco The Massacre, Dodo foi na série muito mais uma função do que uma personagem. Ela era definida por fazer as coisas que os Companions fazem, e ponto. Essa falta de personalidade fez com que houvesse pouco interesse em explorá-la no universo expandido, pois ela era quase uma página em branco. Eis então que o escritor Daniel O’Mahony, mostrou interesse em escrever para Dodo, mas de uma perspectiva bem inusitada; o florescer sexual da personagem, o que faz de O Homem Da Máscara De Veludo um exemplar atípico da linha Missing Adventures. Na trama, situada entre os arcos The Savages e The War Machines, a TARDIS chega à Paris de 1804, mas logo o 1º Doutor percebe que há algo errado. Uma nova Bastilha domina a paisagem parisiense, a revolução francesa continua em curso, e a França é governada com mão de ferro pelo Marquês de Sade e por seu filho Minski. Quando o Doutor, sentindo-se cada vez mais fraco pela idade avançada de seu corpo, é capturado e levado para a Nova Bastilha, Dodo é deixada sozinha para sobreviver, e acaba se juntando a uma trupe teatral que é muito mais do que aparenta.

O Homem Da Máscara De Veludo possui uma atmosfera inquietante, ao trazer personagens em crise; uma ambientação depressiva, e o uso de passagens de violência física e psicológica desconfortáveis. Tal opção combina com a construção de mundo, que traz a Paris alternativa como um lugar desesperançoso, onde nem o espaço da TARDIS parece trazer conforto. O livro assume que nunca se estabeleceu uma dinâmica entre Dodo e o Doutor, além de ela o lembrar da neta. A relação da dupla era forte com o Companion Steven Taylor, mas não um com o outro, e a obra sugere que após Steven sair, surge uma desconexão entre o velho e a garota. O Doutor também está fraco devido a regeneração iminente, o que é um retcon leve, pois ele parece saudável em The War Machines, mas William Hartnell, que viveu o 1º Doutor, também tinha oscilações de saúde, então é uma liberdade referencial. As confusões mentais do Time Lord são outro ponto de tensão da dupla, por expor que ele a vê mais como uma substituta da neta do que por quem ela é.

Nos trechos da Bastilha, o autor articula horror psicossexual e Body Horror, com a presença do Marquês de Sade sendo propícia, não só por Sade ser uma figura histórica enervante, mas por construir a ameaça de Minski, o tirânico antagonista temido até pelo pai, e cuja aparência funciona como um momento de choque que dialoga com os temas de corrupção da inocência propostos pela obra. O estado de saúde do Doutor é usado para explorar a sua determinação, pois quanto mais desafiado ele é pelo mistério do surgimento mundo paralelo, mais forte ele fica. Ainda assim, o corpo do velho já viu dias melhores, como retratado em um trecho desconfortável em que o Time Lord sofre para se manter em pé, quando estando bem fraco, é confinado e confrontado por Minski e Sade em uma sala cuja única “mobília” são moças escravizadas. A exemplo do que Steven Moffat faria em Twice Upon a Time, o autor propõe a luta do 1º Doutor com a sua própria finitude. Outro personagem digno de nota é o prisioneiro amnésico com o rosto oculto por uma máscara de veludo (referência a O Homem Da Máscara De Ferro), que forma uma boa parceria com o Doutor, por partilhar da sua fragilidade, mas também de sua inteligência, e cuja identidade dá uma boa camada de ambiguidade para a obra. 

O núcleo da trupe teatral, por sua vez, é mais orientado pelo desenvolvimento de personagens. Isso não quer dizer que este bloco seja desconexo do resto, pois o líder da trupe, o misterioso Fantômas, tem os seus próprios planos em relação a Bastilha e ao Marquês de Sade. Mas eu gosto de como a trupe é utilizada para reforçar como cada personagem está atuando de certa forma Mas o foco está na relação de Dodo com Dalville, um artista da trupe que deseja corromper Dodo por ser pura demais, ou seja, convencê-la a perder a virgindade. Nesse sentido, o autor faz uma zombaria bastante divertida das filosofias hedonistas, pois como diz um amigo de Dalville, o ator apenas está racionalizando a vontade de transar.

Dodo poderia tornar-se só um objeto de conquista, o que seria muito pobre. Mas o que o autor propõe é um pequeno estudo sobre as inseguranças e a força da Companion, que passam pela descoberta sexual, mas não se limita a isso. O’Mahony usa as inseguranças da moça de modo quase metalinguístico, não só com ela reconhecendo que pode ser meio sem graça, mas que não é a escolha óbvia para um plot como esse. “Eu sou baixinha, minha voz é meio estranha, não tenho muito seio, e meus dentes são feios”, ela afirma em certo ponto. Problemas de baixo autoestima à parte, parece ser justamente a normalidade de Dodo; o fato de ela não possuir uma “Beleza Clássica” nas palavras de Dalville, que o atraem nela. Alguns podem argumentar que o autor vulgariza a personagem pela sexualização, mas eu não acho que o autor cruze a linha, apenas utiliza o sexo (descrito de forma intima, mas não explícita) como elemento de humanização.  

Felizmente, o autor não resume o amadurecimento de Dodo a uma transa. A experiência que ela vive ao participar de vários jogos teatrais funciona como uma terapia, que levanta algumas perguntas importantes. Por que ela aceitou tão rápido se perder no tempo e espaço com dois desconhecidos? Quanto tempo ela vai atuar no papel de “neta” do Doutor antes de assumir quem é? O sexo acaba sendo só o clímax desses questionamentos. Ainda há uma crítica antimoralista bem irônica, pois a moça não acha que perder a virgindade seja algo que destrua a pureza de alguém, não da forma que encarar a maldade que ela enfrenta ao lado do Doutor faz. Por isso é estranha a decisão do autor de fechar a história com Dodo portando uma DST alienígena (você leu certo), que mesmo que tornada inofensiva quando o Doutor restaura o tempo para o curso normal, continua no organismo da moça, que não se incomoda com isso. É um desfecho de mau-gosto por ser desnecessário e não adicionar nada para a jornada da Companion.

O Homem Da Máscara de Veludo decididamente não é uma história de Doctor Who tradicional. Daniel O’Mahony pega uma equipe da TARDIS pouco usada e entrega uma história pesada, explorando conceitos de mortalidade e autodescoberta, que surgem contrastados nas jornadas do Doutor e de sua companheira. Além disso, a obra consegue através do cenário de uma França pós-revolução alternativa tecer alguns comentários sobre os frutos reais de algumas das propostas filosóficas e sociais do período. Mas o mais impressionante é como o autor tenta reinventar Dodo ao reconhecer todas as carências que a moça tinha como personagem, e usar esses vácuos como base para desenvolvê-la. É uma abordagem agressiva, e que não é completamente bem-sucedida, já que ao mesmo tempo que quer dar algum desenvolvimento para a Companion, o’Mahony ainda se mantém coerente com a saída fria (e off screen) da garota em The War Machines, o que dá uma sensação de incompletude para o arco dela. Ainda assim, é a coisa mais interessante já escrita para Dodo (o que reconheço, não é um desafio), e que somado à ótima ambientação; um retrato humanizado do 1º Doutor, e um mistério que gira em torno dos pontos mais sombrios da filosofia do Marquês De Sade, geram uma tentativa instigante, ainda que imperfeita, de fazer um Doctor Who mais subversivo.

Doctor Who: O Homem Da Máscara De Veludo (The Man In The Velvet Mask) Reino Unido. 15 de Fevereiro de 1996
Virgin Missing Adventures #19
Autor: Daniel O’Mahony
250 Páginas

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