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Crítica | Doctor Who: Managra, de Stephen Marley

por Rafael Lima
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Equipe: 4º Doutor, Sarah Jane
Espaço: Parque Europa
Tempo: 3278

Doctor Who muitas vezes mostrou grande fascínio por explorar figuras históricas dentro do universo da série, colocando o Doutor para viver aventuras ao lado de personalidades bem distintas, como H.G Wells e William Shakespeare. Tal característica, entretanto, nunca foi uma constante no programa. Houve períodos em que participações de grandes nomes da nossa história eram frequentes, como nas épocas em que William Hartnell e David Tennant protagonizaram a série, mas também existiram períodos em que tais participações especiais foram totalmente inexistentes, como quando Patrick Troughton e Peter Davison estiveram á frente do programa. Tom Baker, que viveu o Quarto Doutor por sete anos, nunca teve uma aventura ao lado de uma personalidade histórica, excetuando a ponta de Leonardo Da Vinci em City Of Death. O autor Stephen Marley resolveu corrigir isso na literatura com o romance Managra, onde o Doutor de Baker encontra um grande número de figuras históricas, mas de um jeito bem diferente do que se poderia esperar.

Situado entre os arcos Planet Of Evil e Pyramids Of Mars, o livro tem início com a chegada do Quarto Doutor e Sarah Jane no que parece ser a Capela Sistina, em mais uma das fracassadas tentativas do Time Lord de levar a sua companion à uma praia. Assim que começam a explorar o local, o Doutor logo percebe que eles não estão no Vaticano convencional, e sim em Europa, um parque temático do Século 33 que reproduz períodos clássicos da história europeia, e que acabou se tornando uma comunidade autônoma, guiada com mão de ferro pelo Vaticano. Conhecendo a má fama do local, o Doutor tenta partir com Sarah, mas a dupla acaba sendo capturada, e acusada de auxiliar Lord Byron no assassinato do Papa, que acaba de ocorrer.

Encaixando-se perfeitamente no clima gótico e horrorífico da 13ª temporada da série, Managra tem como principal mérito a cuidadosa construção de mundo que Stephen Marley realiza em relação á Europa. O absurdamente enorme “Parque Temático” mistura futurismo (cavalos robóticos, motos voadoras invisíveis, punhais teleguiados, uma Cidade do Vaticano que flutua no céu) com uma arquitetura, vestimentas e comportamento feudais por parte da população, dividida entre nobres e plebeus. Os habitantes de Europa convivem com as reprises, que são clones de figuras históricas, e em alguns casos, “clones” de personagens fictícios da literatura europeia, como o Fausto de Goethe, e os Três Mosqueteiros (clones de atores que interpretaram os personagens no cinema, com as memórias dos personagens). Há mesmos monstros do folclore europeu habitando as florestas, como vampiros, fantasmas e lobisomens.

Através das reprises, Marley aborda questões bem interessantes, como identidade, existência da alma e criatividade, criando uma gama de personagens bastante complexos. O romance não apresenta uma, mas sim três reprises diferentes de Lord Byron, cada uma delas com uma personalidade bem distinta, escolhendo aspectos diferentes da persona do verdadeiro Byron para guiar as suas vidas, o que faz com que lidem de forma diferente com o fato de serem reprises. Essas variações de Byron chegam inclusive a terem nomes diferentes, Bad Byron, Mad Byron, e Dangerous Byron, com este último acabando por ter um pouco mais de destaque devido a sua aliança com o Doutor e Sarah.

As reprises que servem ao Vaticano, como o absolutista Cardeal Richelieu, e o infame inquisidor Tomás de Torquemada, apesar do caráter vilanesco, levantam discussões curiosas, ao não poderem se candidatar ao Trono de São Pedro por supostamente não terem alma, mas afinal, um clone teria menos alma que um original? Por fim, Mary Shelley, que lidera a resistência contra o Vaticano, torna-se uma das personagens mais bem escritas do livro, ao demonstrar não só enorme força de caráter e poder de liderança, mas também um lado mais frágil e inseguro em relação à sua natureza como uma reprise, que ela revela ao Doutor em uma tocante conversa na lendária Villa Diodati, onde foi inspirada a escrever o clássico Frankenstein, como se sente mais próxima do Monstro do que a verdadeira Mary Shelley jamais seria capaz.

A trama traz um vilão assustador na figura do Dr. Sperano, o sádico líder do Teatro da Transmogrificação, que vem manipulando uma série de conflitos em Europa, e os jogos de poder no Vaticano para alcançar um poder inimaginável. Descrito como um ser alto e esguio, com o rosto sempre coberto com máscaras teatrais, Sperano é um antagonista enigmático e cruel, capaz de provocar tensão no leitor cada vez que surge no livro. Entre os personagens originais da obra, o mais desinteressante acaba sendo Miles Dashing, um caçador de vampiros de sangue nobre, cuja história acaba cruzando com a da resistência contra o Vaticano, e consequentemente com o Doutor. O problema é que Dashing, que está longe de ser um personagem simpático ou mesmo interessante, ganha um protagonismo exagerado na narrativa, o que acaba tornando meio torturante o longo tempo que passamos ao seu lado.

A equipe da TARDIS, por sua vez, é muito bem transposta para as páginas, com a divertida dinâmica entre o 4º Doutor e Sarah Jane Smith sendo fielmente reproduzida. Embora explore o lado mais divertido e jocoso da encarnação de Tom Baker, parece ser o aspecto enigmático do Time Lord que realmente interessa ao autor. O livro nos lembra de que em suas viagens, o Doutor pode ter visto coisas que são simplesmente horríveis demais pra serem contadas. O Doutor e Sperano tem um passado em comum, envolvendo um encontro com a sanguinária Condessa Elizabeth Bathory em 1613, que resultou em consequências trágicas. O autor nos revela somente o necessário sobre o que teria acontecido em tal encontro, deixando que o leitor apenas imagine a história completa, que parece perturbar tanto o Gallifreyano. Marley trabalha bem essa perturbação do Doutor, sem trair a natureza mais reservada desta encarnação, sempre disposto a esconder suas verdadeiras emoções atrás de bom humor e uma oferta de Jelly Baby.

Sarah Jane Smith é relativamente bem utilizada, especialmente no terço inicial do livro, onde a personagem é usada no terreno do humor, ao perceber o absurdo inicial da situação em que se encontra, ou seja, perdida de biquíni em pleno Vaticano, acompanhada de Lord Byron. A interação cheia de provocações entre Sarah e “Dangerous Byron” com certeza são os melhores momentos da garota no livro. Além disso, o romance explora os traumas de infância da personagem envolvendo o acidente que matou seus pais (tema que anos depois, também seria explorado na série solo da companion), com tais traumas sendo cruelmente manipulados pelo Dr. Sperano para controlar a garota. Claro, Sarah assume novamente o papel que ocupou em boa parte da era Tom Baker, sendo inevitavelmente sequestrada e hipnotizada em certo ponto da trama, além de estar longe de demonstrar a mesma maturidade que tinha em seus anos iniciais na série, o que acabou empobrecendo a jornalista como personagem, o que se repete aqui.

Apesar de ter elogiado a construção de mundo de Stephen Marley, o autor parece ter se fascinado excessivamente pelo universo que criou, gerando várias subtramas, que embora se conectem de uma forma ou de outra com a trama principal, parecem existir mais para construir a mitologia da Europa do que efetivamente contribuir com a história, como a investigação conduzida por Casanova, e a disputa pelo posto de Anti Cristo travada pelas reprises de Alesteir Crowley, Fausto e Paracelso. Sim, estas subtramas enriquecem o universo do livro, mas acabam por roubar o ritmo da história, tornando-a mais intrincada do que ela precisava ser. Nas páginas finais, o autor também demonstra certa pressa para encerrar a história, terminando-a duas ou três páginas depois do clímax, perdendo a chance de entregar um epilogo mais cuidadoso, que poderia ser proporcionado devido ao formato literário.

Apesar disso, ‘Managra’ é uma leitura que vale a pena, proporcionando bons momentos de ação e de tensão. Traz um conceito instigante de criação de mundo através da Europa, um vilão assustador, interessantes discussões filosóficas á respeito de identidade, e ainda se utiliza muito bem das principais características do Quarto Doutor, aprofundando o personagem, mas sem abrir mão da aura de mistério que o cerca. Pode tornar-se exaustivo desnecessariamente em alguns pontos, e se beneficiaria se fosse um pouco mais curto, mas é uma leitura divertida. Um verdadeiro crossover do Quarto Doutor com figuras históricas, ou pelo menos, com suas reprises.

Doctor Who: Managra (Reino Unido, 21 de Setembro de 1995)
Virgin Missing Adventures #14

Autor: Stephen Marley
Publicação original: Virgin Books
302 páginas

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