Equipe: 6º Doutor, Evelyn Smythe
Espaço: Torre de Londres
Tempo: 1903 e 2003
Um dos conceitos que estudamos em Teoria da História é a plena e necessária capacidade de questionamentos e aberturas para todo tipo de visão a respeito de um chamado fato histórico. Problematizando a questão, a teoria prevê com isso a possibilidade de revisionismos (dos mais chinfrins e mal-caráter aos teoricamente bem-intencionados) e um grande número de interpretações que, de certo modo, vão no caminho contrário do que a Academia ou o maior grupo de especialistas na área concluíram em seus estudos. São os ossos do ofício. O fato é que a História é um disciplina onde sempre cabem versões diversas de um mesmo evento, isso porque ela própria se entende da seguinte forma: não existe verdade absoluta e, em termos de manutenção de uma narrativa social ampla e bem divulgada, a História é sempre escrita pelos vencedores. Neste 40º episódio da série Big Finish: Main Range, temos, em cima desse conjunto teórico, o cerne da aventura.
Ao lado de Evelyn Smythe (que assim como Barbara, é historiadora), o 6º Doutor chega à Torre de Londres em 1903… ou quase isso. O roteiro fenomenal de Robert Shearman (responsável por outras duas ótimas histórias prévias do 6º Doutor, The Holy Terror e The Maltese Penguin; além do soberbo episódio Dalek, da Era Eccleston) começa com a discussão entre o Time Lord e sua companheira sobre os meandros interpretativos da História e o que ela pode nos trazer de coisas positivas ou negativas, dependendo de quem a escreve, das ações que um determinado governo toma, da linha que um povo adota como projeto de nação. Isso não é exatamente novo em se tratando do Doutor e Evelyn, pois desde a chegada da professora, no excelente The Marian Conspiracy, discussões teóricas em torno da disciplina de Clio estavam em pauta. Mas aqui em Jubilee esse tipo de conversa não só ganha um enorme peso pelo que apresenta depois, como também recebe uma correta forma de questionamento.
Ao falar sobre História dos vencedores e perdedores, a dupla de tripulantes da TARDIS acaba vivendo na pele algumas possibilidades reais dessa conversa e isso tem a ver com um baita paradoxo temporal ocorrido entre 1903 e 2003, dois diferentes tempos onde o Doutor materializa (ou tenta materializar) sua nave, o que acaba gerando uma série de consequências a longo prazo. Além da densa linha teórica do texto, o autor também consegue trabalhar com sucesso mais um caso em que o Doutor faz de tudo para ajudar um povo, mas seus atos tornam as coisas ruins no decorrer dos anos. É impossível não fazer algumas relações com outras obras do Universo expandido ou mesmo do cânone da série, e isso também vale para o ponto onde o Doutor se recusa a aceitar a possibilidade de um “comportamento diferente”, quase redimido, de um Dalek, fazendo pulular em minha mente, a todo momento, um conto de 2013: O Efeito de Propagação.
Ao prender o Doutor e Evelyn em um paradoxo tendo um Dalek “à disposição”, o autor consegue fazê-los encarar consequências drásticas para eles e para a sociedade, ao mesmo tempo em que cria um cenário simulando duas diferentes e ao mesmo tempo iguais sociedades (pelas características de extremismo em suas respectivas coordenadas políticas): a Alemanha nazista e a União Soviética. Mortes, vigilância extrema, totalitarismo, belicismo, culto ao líder, culto à violência… existem tantos elementos realistas, adotados por sociedades diversas ao longo da História, que é quase inacreditável que o autor tenha conseguido colocar tudo isso aqui e dar sentido ao enredo central de quando o Senhor do Tempo e a Professora de História passam a maior temporada: o jubileu de Nigel Rochester, presidente do Império Inglês nessa linha do tempo alternativa da Terra, criada pelo paradoxo envolvendo o Doutor e uma tal “Grande Guerra Dalek de 1903“. Essa sociedade tem todos os cacoetes de proibições de coisas banais por governos estúpidos (por exemplo, fazer contração de palavras) e diminuição de grupos sociais (aqui, especialmente as mulheres) e é nela que os viajantes do tempo precisam entender e consertar a bagunça temporal.
O único ponto que acho fora da curva nesse episódio está na reta final, quando o enredo dá uma pausa para mostrar um longo diálogo entre Daleks de diferentes linhas temporais, assim como algumas confusões causadas pelo início do ajuste dessas linhas do tempo (ou seja, a extinção de uma realidade e o conserto de outra). Em ambos os casos temos o aparato técnico seguindo a excelente qualidade do restante do episódio, mas o que pega é a aparência de “bloco mal encaixado” no todo da saga. Não são momentos mal realizados ou mal escritos, mas acabam sendo incômodos porque não estão inseridos organicamente na narrativa, que termina criando um bom ciclo histórico e reafirmando a repetição da História como tragédia e como farsa. Um excelente exemplo de como podemos ter de tudo em Doctor Who.
Doctor Who: Jubilee (Big Finish Mensal #40) — Reino Unido, janeiro de 2003
Direção: Nicholas Briggs, Robert Shearman
Roteiro: Robert Shearman
Elenco: Colin Baker, Maggie Stables, Martin Jarvis, Rosalind Ayres, Steven Elder, Kai Simmons, Jane Goddard, Rob Shearman, Jack Galagher, Georgina Carter, Nicholas Briggs
Duração: 143 min.