Equipe: 6º Doutor, Peri
Espaço: Roma Alternativa
Tempo: 41 A.C
Como qualquer programa de longa duração, Doctor Who se envolveu em algumas controvérsias ao longo dos anos, e uma recorrente são as acusações de machismo feitas contra a série. Algumas dessas críticas são discutíveis, enquanto outras, ainda que justas, esquecem de considerar o contexto da época em que certos episódios foram produzidos. Por outro lado, é difícil negar que certos períodos da série foram machistas, mesmo levando a época em conta, e o tratamento dado a Companion Peri Brown, vivida por Nicola Bryant foi um desses tempos. Um dos momentos mais simbólicos em torno da sexualização e fragilização de Peri foi o arco Vengeance On Varos, que entre outras coisas, a viu ser transformada em uma garota-pássaro. Pois o autor Christopher Bulis escolhe revisitar esse evento tão ilustrativo, justamente para colocar Peri em uma jornada de empoderamento.
Na trama, situada entre a 22ª e a 23ª temporada da Série Clássica, a TARDIS aterrissa no que parece ser a Roma de 41 a.C, mas algo está errado. A cidade funciona por máquinas a vapor; os mais ricos contam com luz elétrica, e o mundo foi posto de joelhos pela aliança entre Roma e o Egito, sendo agora governado pelos filhos de Cleópatra e Marco Antônio. Os anacronismos, entretanto, estão longe de serem os únicos problemas, já que Peri volta a sofrer as mutações que a atormentaram no Planeta Varos, e o Sexto Doutor começa a retro regenerar, assumindo a forma de suas encarnações anteriores, tornando-se cada vez mais fraco e doente a medida em que retrocede. Enquanto uma guerra que pode devastar o mundo inteiro está prestes a estourar, o Doutor e Peri devem correr contra o tempo para descobrir o que houve com a história da Terra, e com eles mesmos.
Com Estado De Mudança, Bulis cria uma mistura entre as tramas de épico histórico, e a influência do gênero steampunk. Todo o conflito central do romance gira em torno de uma disputa de poder entre os irmãos Alexandre Hélios e Cleópatra Selene pelo controle do império, em uma contenda cheia de jogos políticos e intrigas palacianas, com o terceiro irmão, Ptolomeu César, o membro mais pacífico desse triunvirato, ficando no meio dessa violenta rivalidade. O trabalho de construção de mundo que o autor realiza nesse livro é excelente, com descrições ricas que articulam com competência ambientes que remetem a civilizações antigas, ao mesmo tempo em que possuem um certo ar de revolução industrial para criar esse cenário único de uma Roma antiga steampunk com influência egípcia.
Bulis está trabalhando com arquétipos conhecidos deste tipo de história, com Alexandre sendo o tirano de natureza um pouco infantil; Cleópatra Selene como a mulher fria, que usa a sua beleza e inteligência para atingir os seus objetivos, e Ptolomeu César como o líder nobre e relutante, que se vê forçado a lutar pelo trono para pacificar o seu lar. Mas é na construção da dupla protagonista que a caracterização do romancista brilha, ao colocá-la em situações bastante extremas. O conceito da Retro Regeneração é interessante, por ser uma forma bem criativa de trazer algumas das antigas encarnações de volta, sem permitir que elas roubem muito o espaço do Time Lord protagonista, funcionando até mesmo como uma pequena jornada de humildade para o 6º Doutor. Na TV, o Doutor de Colin Baker chegou a afirmar ser a melhor versão do personagem, mas ao conseguir estabilizar a sua situação, o Time Lord deve recorrer a habilidades muito específicas de encarnações anteriores para resolver alguns dos problemas que encontra pelo caminho. Entretanto, vale apontar que essa é mais um livro estrelado pelo 6º Doutor onde os autores dão um jeito de fazê-lo manter o seu característico casaco colorido guardado a maior parte do tempo, o que tem certa lógica pelo ambiente da trama, mas que talvez diga mais sobre como as pessoas se sentiam sobre o figurino de Colin Baker do que sobre narrativa.
Mas o maior destaque vai para Peri, que assume a frente da ação durante a maior parte da história. A americana, a princípio, fica aterrorizada ao reviver a traumática experiência de Varos, mas a medida em que a trama avança, percebe as vantagens de seu novo corpo, que não só permite que ela voe, como também aumenta a sua força física. Assim, uma forma que antes representava um estado fragilizado para a moça, agora lhe dá confiança, o que surge especialmente através de ótimas passagens de ação, vide aquela onde Peri enfrenta um zepelim armado. O interessante é que o livro reconhece que Peri não foi a mais corajosa das companheiras, e que também havia um certo sex appeal em sua construção. A obra referência essas características para explorar um arco dramático simples, mas bem-feito, onde a jovem deve reconhecer a sua própria força interior, e de que é muito mais do que os olhos podem ver, superando até mesmo as expectativas do Doutor. É bom ver uma história que dá esse peso para Peri, e que ainda a coloca contra antagonistas femininas expressivas como Cleópatra Selene, além de uma vilã clássica da série.
Em termos de trama, Christopher Bulis consegue nos manter investidos em sua história, nunca perdendo a atenção do leitor. O autor constrói muito bem o crescendo da narrativa, que começa como uma história de intriga e espionagem, para então escalar para níveis cada vez maiores de ação, com direito a lutas no Coliseu e combates aéreos, em um aumento de escala orgânico. Mas como em outros trabalhos, o romancista parece não saber a hora de parar, ao inserir um novo plot já no fim da obra, que embora não venha do nada, e ajude a explicar o caráter de realidade alternativa da história, surge de forma um pouco atravessada e com um tom deslocado do que o livro havia apresentado até então.
Estado De Mudança é um romance bastante divertido da série, com sua intrigante mistura de épico de intriga histórico e aventura steampunk. Os personagens são carismáticos, a construção de mundo é instigante, e apesar de eu ter os meus problemas com algumas das reviravoltas propostas pelo final, não há como negar que a história é muito bem conduzida. Mas o mais interessante do livro de Christopher Bulis é o tratamento que o escritor dá para Peri Brown, ao colocá-la no centro da narrativa, revisitando um dos momentos mais frágeis da companheira para mostrar as suas principais forças, que sempre estiveram presentes na série, mas que o programa raramente soube explorar.
Doctor Who: Estado De Mudança (State Of Change) — Reino Unido, 1 de Dezembro de 1994
Virgin Missing Adventures #5
Autor: Christopher Bulis
295 Páginas