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Crítica | Doctor Who: Engano, de Peter Darvill-Evans

Uma Ace amadurecida volta a viajar com o 7º Doutor.

por Rafael Lima
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Equipe: 7º Doutor, Ace,  e Bernice “Benny” Summerfield
Espaço: Planeta Arcádia
Tempo: 2573

Peter Darvill Evans é um nome que nem sempre tem o reconhecimento que merece entre os fãs de Doctor Who. Ainda que nunca tenha participado da série de TV, Evans foi quem deu prosseguimento à Série Clássica quando criou e se tornou editor da Linha New Adventures, da Virgin, dando assim continuidade as aventuras do Sétimo Doutor. Os livros da Virgin não só se tornaram a principal casa de Doctor Who durante a primeira metade dos anos 90, como também teriam grande influência na forma como a Nova Série seria conduzida, dando os primeiros grandes trabalhos na franquia para nomes como Mark Gatiss, Paul Cornell, e é claro, Russel T. Davies.

Para merecer estabelecer um parâmetro de exigência para os seus escritores, Evans decidiu que teria que ser capaz de escrever o seu próprio livro de Doctor Who. Assim sendo, o editor escreveu Engano, que tem uma grande importância para a jornada do 7º Doutor ao promover o retorno da Companion Ace após a sua chocante partida em Amor e Guerra. Na trama, três anos se passaram para Ace desde que ela deixou o Doutor no Planeta Paraíso após descobrir que a morte de seu namorado foi consequência indireta de um dos planos do Time Lord para deter uma ameaça alienígena. A garota passou os últimos anos lutando na II Guerra Dalek, mas quando o conflito termina, Ace aceita uma missão de reconhecimento que a leva até Arcádia, uma distante colônia da Terra que perdeu o contato com o nosso planeta há alguns anos. Mas quando Ace descobre a arma secreta que a nave de sua tropa está carregando, ela inadvertidamente acaba entrando em contato com o Doutor, enquanto ambos são atraídos para os estranhos experimentos que têm ocorrido ali.

Quando Ace deixou a TARDIS, e Bernice Summerfield juntou-se ao 7º Doutor, o selo New Adventures declarou de vez que não era apenas um material complementar da Série Clássica, mas a sua continuação, como o autor defende no posfácio. Nesse sentido, trazer Ace de volta para a TARDIS poderia soar um retrocesso, especialmente tão pouco tempo após a sua partida (Engano foi publicado seis meses após Amor e Guerra), mas decididamente as coisas não haviam sido resolvidas entre o Time Lord e sua Companion. Além disso, a garota de Perivale que retorna neste livro é uma personagem mudada, passando a ser chamada pelos fãs inclusive de New Ace, por sua postura menos juvenil e mais agressiva. Não que Evans descaracterize a Companion, mas três anos lutando em uma guerra contra os Daleks deixaram Ace mais amarga e endurecida, e embora ela ainda tenha muita de sua energia juvenil, sua natureza inocente que a caracterizou na TV já não existe mais.

Evans faz um grande esforço para recontextualizar Ace para o leitor, de modo a fazer da jovem a protagonista do romance (O Doutor e Benny só aparecem depois de sessenta páginas). Mas ao mesmo tempo em que dá nítido protagonismo para Ace, o autor trabalha os diferentes núcleos da narrativa de forma orgânica, costurando-os com habilidade, ainda que falhe em manter todos relevantes durante o 3º ato. O romance se divide em três núcleos durante a sua primeira metade: a nave em que Ace e seus colegas fuzileiros estão viajando; o mundo de Arcádia, que parece ser uma sociedade medieval; e a estação espacial que orbita Arcádia, onde a criatura cibernética Lacuna comanda os eventos no planeta e seus arredores com mãos de ferro, servindo a uma força ainda mais poderosa.

Para explorar esses núcleos, o autor nos dá o ponto de vista de um determinado grupo de personagens. Durante a metade inicial da obra, acompanhamos o que acontece no planeta através dos olhos de Francis, um jovem escriba prestes a ser enviado para uma jornada da qual ninguém retorna, enquanto na estação espacial, acompanhamos Britta Hoffmann, uma jovem bioquímica que ao chegar perto demais da verdade sobre o que está acontecendo em Arcádia, acaba sendo submetida a um cruel processo de lavagem cerebral, tornando-se praticamente uma escrava sexual para a vilã Lacuna. Por fim, Ace fica responsável por nos conduzir nos trechos envolvendo a expedição a Arcádia, que acabam sendo os mais bem desenvolvidos do primeiro terço do romance. O problema é que os trechos em Arcádia e na estação espacial soam muitas vezes confusos em algumas passagens, de uma forma que não parece colaborar muito com a narrativa. E se esse tom febril que Peter Darvill Evans propõe até faz sentido nas passagens estreladas por Britta pelo autor flertar diretamente com o horror psicossexual, de modo a causar desconforto no leitor, o mesmo não pode ser dito sobre os trechos estrelados pelo escriba Francis, com seu núcleo só passando a ter relevância real após a chegada da TARDIS em Arcádia.

Quanto ao núcleo de Ace, este se inclina mais para o Sci-Fi de ação, uma abordagem que vai se tornando dominante na história ao virar páginas do livro. Ainda que flerte com o horror B, e até com conceitos lovecraftianos, como aquele por trás da A.I Pool, Engano acaba em sua segunda metade fincando o pé na ação, com muito tiro e explosão. Não é à toa que o romance traz para a literatura Abslom Daak, o matador de Daleks, personagem criado nos quadrinhos, e que sintetiza a cultura oitentista do herói de ação brucutu. Evans escreve bem as passagens de ação, nunca deixando o leitor perdido nos conflitos frenéticos que propõe. Ao mesmo tempo em que traz essa linha de ação mais movimentada, a obra traz bem vindos momentos de respiro através das investigações que o Doutor e Bernice conduzem sobre os eventos que se desenrolam em Arcádia há anos. Essa investigação é muito interessante, já que enquanto o Doutor explora o lado mais prático, e até didático sobre as experiências realizadas por Pool, Bernice, está preocupada com as questões mais humanas, ao resgatar uma traumatizada garota dos agentes de Lacuna, passando a protegê-la.

Apesar de passarem grande parte da trama separados, a dinâmica do time da TARDIS, alterada com o retorno de Ace, é desenvolvida de forma instigante. O autor explora o lado inseguro de Benny sem trair a postura confiante da personagem, fazendo-a se perguntar qual seria o seu lugar na TARDIS, tendo em vista que ela não possui a mesma relação profunda que seus companheiros de viagem dividem. A dinâmica entre o 7º Doutor e Ace, por sua vez, passa por uma transformação curiosa. A jovem de Perivale não é mais a mesma pessoa que deixou a TARDIS anos antes (da perspectiva dela); embora já não guarde mais a mesma raiva de seu velho amigo, ela também não o idealiza mais. O Doutor, por sua vez, embora fique muito feliz em ver Ace bem e independente, parece também não saber exatamente como reagir ao retorno de sua antiga protegida, ficando até mesmo desconfiado dos reais motivos que a fazem querer viajar na TARDIS de novo.

Evans conclui a obra de forma satisfatória, dando a cada um dos três protagonistas um momento de brilho durante o 3º ato, e nos deixando intrigados para ver como irá funcionar o time da TARDIS daqui para frente. Entretanto, é inegável que coadjuvantes com grande importância no começo do romance, como Francis e principalmente Britta, encontram desfechos bem insatisfatórios e apressados, o que é frustrante tendo em vista a quantidade de páginas dedicadas a eles. Vale ainda comentar o posfácio que fecha o livro (que parece uma característica do autor, já que ele voltaria a escrever um em Asilo), onde ele comenta a sua visão da série, e como ele orienta os seus escritores sobre histórias situadas no futuro, tendo desenhado uma espécie de história da Terra baseada nas informações dadas pela série, além de sua própria ideia sobre como funciona a mecânica da viagem no tempo no universo de Doctor Who. É um posfácio muito interessante de se ler, pois é basicamente como se fosse uma conversa com o Showrunner da série, um papel que Evans reivindica sem modéstia, já que não via o programa revivendo tão cedo.

Engano é uma ficção científica de ação bastante eficiente, com alguns toques de horror cósmico e psicossexual que conseguem ser perturbadores sem necessariamente ser apelativos. O autor é muito bom na condução da ação e consegue trabalhar o desenvolvimento de seus personagens principais dentro de uma dinâmica frenética de forma satisfatória. Entretanto, quando assume uma perspectiva mais intimista de personagens que precisam apresentar o mundo da história, Peter Darvill se perde um pouco em passagens um pouco confusas, que precisam ser retificadas depois, o que acaba deixando as primeiras páginas um pouco arrastadas. Um pouco mais de cuidado com o fechamento de alguns personagens coadjuvantes também teria feito muito bem ao romance. Apesar de possuir alguns tropeços pelo caminho, Engano é um romance que vale a leitura, pois ainda que tenha os seus defeitos, acerta naquilo que mais lhe interessa, que é reintroduzir Ace para o leitor, que volta pronta para sacudir a dinâmica mais harmoniosa que havia sido estabelecida entre o 7º Doutor e Bernice.

Doctor Who: Engano (Deceit) — Reino Unido. 15 de Abril de 1993.
Autor: Peter Darvill-Evans
Publicação: Editora Virgin.
Virgin New Adventures #13
325 Páginas

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