Home TVEpisódio Crítica | Doctor Who: Destination: Skaro (Children in Need Special 2023)

Crítica | Doctor Who: Destination: Skaro (Children in Need Special 2023)

O 14º Doutor no passado de Skaro e... a polêmica de Davros.

por Rafael Lima
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Doctor Who tem uma longa parceria com o Children In Need, show beneficente da BBC, que arrecada fundos para instituições de caridades e hospitais infantis. DW foi uma presença constante no programa, seja pela produção de clipes especiais para o show, seja pela participação de seus atores, que muitas vezes surgiam até caracterizados como os personagens em ações ao vivo. Mas algumas das participações de Doctor Who no Children In Need foram importantes para a série. O Especial de 20 anos de Doctor Who foi exibido como parte da programação, e David Tennant fez a sua primeira aparição completa como o 10º Doutor em um mini episódio produzido para o Show em 2005. Dezoito anos depois de apresentar o Doutor de David Tennant no Children in Need, o Showrunner Russell T. Davies reedita essa parceria ao trazer a primeira aparição completa do 14º Doutor, também vivido por Tennant, em um mini episódio do Children in Need, intitulado Destination: Skaro.

Escrita por Davies, a trama traz Davros e seu assistente Castavillan desenvolvendo a armadura Dalek. Quando Davros se ausenta, a TARDIS chega desgovernada ao local, pilotada pelo 14º Doutor recém regenerado. O que se segue é o Doutor acidentalmente contribuindo com várias ideias que caracterizariam os seus nêmesis, desde o nome Dalek, passando pelo grito de guerra “exterminar!”, até a substituição da garra metálica que Davros havia criado, por um braço de sucção. Destination: Skaro é uma comédia baseada na química de David Tennant e Mawaan Rizman, que constroem o timing cômico da cena na consternação inversamente proporcional entre os personagens. Se o Doutor está distraído, pensando na volta de seu antigo rosto, ou sobre o Dalek destruído à sua frente, Castavillan está apavorado pela bagunça causada pelo Time Lord. Mas se o cientista está absorto nos nomes que ouve pela primeira vez, é a vez de o viajante do tempo ficar em pânico. É uma base cômica bastante simples, mas funciona. É uma pena que a direção não confia no timing dos atores para deixar o humor de constrangimento funcionar por si, inserindo uma trilha ‘divertidinha’ que grita que estamos vendo uma comédia.

Mas o que causou discussão não foi a esquete em si, mas o conteúdo promocional divulgado online junto com o mini episódio. No conteúdo, Davies aponta que a opção por retratar Davros (vivido novamente por Julian Bleach) sem o rosto queimado e com pernas, não foi uma mera escolha de continuidade, devido à trama se passar antes do acidente que deu ao Kaled a sua famosa aparência. A opção se deu, pois o produtor não achou de bom tom trazer um vilão que pode ser visto como um cadeirante para um show beneficente que tem como um de seus objetivos ajudar crianças com deficiência, o que é um ponto mais do que justo. Mas Russell T. Davies vai mais longe, ao afirmar que o visual clássico de Davros é problemático para os dias de hoje ao associar deficiência com maldade, e sugere que em suas futuras aparições, o vilão vai permanecer com a aparência deste especial. Como dito, a declaração causou polêmica entre os fãs e críticos de TV, e como foi feita como parte do material promocional (que provavelmente visava causar discussão mesmo), é justo usar o espaço dessa resenha para refletir sobre o tema, pois traz um debate interessante.

É importante dizer que Davies não parte de um ponto absurdo. Há um tropo na ficção que põe deformações e deficiência física como sinais de vilania e degradação moral. Muitos vilões de 007 se encaixam aí; o Capitão Gancho, de Peter Pan, é movido pelo trauma da perda da sua mão; o clímax de Star Wars: O Retorno De Jedi Luke Skywalker olhando para o seu braço biônico como um sinal de que está se corrompendo da mesma forma que seu pai, Darth Vader, foi corrompido. Claro, há que se considerar também que a fantasia, a ficção científica e o horror são construídos visualmente muitas vezes sobre a sensação de estranheza de se pegar uma figura humana e cruzá-la com outra coisa (animal ou máquina) ou deformá-la de algum modo, algo de origem muito mais sensorial e instintiva do que moral, e que sempre vai existir. É besteira negar isso em nome de algum senso de superioridade moral. Mas também é tolice não reconhecer que a cultura pop é cheia de personagens vilanescos cuja maldade é simbolicamente e até narrativamente associada a deficiência e deformidade, o que é problemático. Mas existe uma linha tênue entre os dois cenários. 

A ideia de que há um problema de representação em Davros, pois “ele é um cadeirante que é maligno”, o que seria insensível hoje, traz questões. Vamos ignorar que Davros foi pensado menos como um cadeirante e mais como um ser meio Dalek. As limitações e a aparência de Davros nunca foram uma questão para o personagem. O que se pode dizer é que a série, de questionável, já colocou o Doutor usando as dificuldades de locomoção de Davros como vantagem contra o vilão em algumas ocasiões, sendo a mais ilustrativa o roubo de sua cadeira pelo 12º Doutor de Peter Capaldi em The Witch’s Familiar. Mas fora isso, Davros ser quem é nunca passou por sua deficiência, a não ser que se argumente que ele está se tornando mais Dalek do que homem, mas é preciso um salto lógico para ligar isso à sua deficiência.

Importante dizer que não há problema algum em dar a Davros um visual repaginado que dispensa a cadeira e a deformidade. Isso até abre a possibilidade de novas abordagens para o vilão. Mas o motivo da mudança é bastante questionável. Parece sintomático que após tirar Davros de sua cadeira, Davies introduza, no especial The Star Beast, Shirley Bingham, uma personagem cadeirante carismática e muito capaz, e que ocupa na UNIT um posto que já foi do Doutor. Como Davros, ela tem a sua falta de mobilidade como parte dela, mas não como a definição de quem ela é. A inclusão da personagem é ótima, trazendo uma diversidade que tem tudo a ver com Doctor Who, e que é natural. Mas o que esses dois movimentos, somados, sugerem? O que é problemático nesse movimento de Davies, é que na ânsia de não criar retratos questionáveis, ele paradoxalmente limita as representações. Na minha perspectiva, representatividade significa que personagens com deficiência física (ou de qualquer grupo que careça de representatividade) possam ser todo tipo de pessoa que a natureza humana permite; daquela mais inspiradora e admirável até a mais desprezível e assustadora, como Davros, por exemplo. Apontar que é desconfortável um personagem cadeirante ser mal, e tirá-lo da cadeira para começar a representar cadeirantes só como personagens positivos, é trocar um estereótipo por outro.

Ainda que se entenda que este mini episódio seja voltado para um público mais amplo do que o que geralmente assiste Doctor Who, algumas escolhas mais sutis de trilha e direção poderiam ter tornado a cena ainda mais divertida do que foi. Mas para o que deveria ser um simples esquete para apresentar o 14º Doutor, Destination: Skaro levantou algumas discussões dignas de se ter, devido às declarações de Davies. Minha opinião é que se deve tomar cuidado para que esse tipo de sinalização de virtude, sugerida pelo Showrunner, não acabe se tornando o seu próprio tipo de capacitismo paternalista.

Doctor Who: Destination: Skaro- Children In Need 2023 (Reino Unido, 2023)
Direção: James Donoghue
Roteiro: Russell T. Davies
Elenco: David Tennant, Mawaan Rizwan, Julian Bleach
Duração: 5 Minutos

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