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Crítica | Doctor Who: Crepúsculo Dos Deuses, de Christopher Bulis

Guerra, polarização e colonialismo invadem o "Planeta Teia".

por Rafael Lima
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Equipe:  2º Doutor, Jamie, Victoria
Espaço: Planeta Vortis
Tempo: Não especificado

The Web Planet, arco da 2ª Temporada da série clássica de Doctor Who, é considerado um dos piores do show. Entre outros motivos, esse arco do 1º Doutor foi criticado por possuir uma maquiagem, cenografia e efeitos especiais risíveis, mesmo para os padrões da época. Ainda assim, poucos arcos foram tão revisitados no Universo Expandido quanto The Web Planet, e não é difícil de compreender o motivo, pois a ambição criativa da história, que trazia um planeta de criaturas insectoides era inegável, mas excessiva para o orçamento da TV de 1965. As HQs e audiodramas não têm os mesmos problemas do audiovisual para representar as criaturas e as ambientações vistas no arco, e a literatura menos ainda, como pode-se observar no romance Crepúsculo Dos Deuses.

Na trama, situada entre The Web of Fear e Fury From The Deep, a TARDIS chega ao planeta Vortis centenas de anos após a primeira visita do doutor àquele mundo. O que o Segundo Doutor, Jamie e Victoria encontram é um planeta em conflito, sendo disputado por duas facções diferentes de invasores da raça Rhumon: os republicanos e os imperiais, com nativos como as Menoptera sendo exterminadas ou escravizados no fogo cruzado. Sendo arrastado junto com os seus companheiros para o meio dessa guerra, o Doutor deve encontrar uma forma de libertar Vortis e seu povo de um conflito sangrento, ao mesmo tempo em que um antigo inimigo está agindo nos bastidores para se beneficiar da situação no planeta.

Com Crepúsculo Dos Deuses, Christopher Bulis nos traz uma história antiguerra, que aponta como a mentalidade do “nós contra eles” nos impede de dialogar; minando a autocrítica e ferindo até quem não tem nada a ver com a história. Bulis faz um paralelo óbvio com a Guerra Fria, retratando os republicanos nos arquétipos dos comunistas soviéticos, e os imperiais com arquétipos do imperialismo americano do século XX e do imperialismo britânico do Século XIX, com a religião desempenhando papel fundamental. Embora as diferenças entre os dois grupos sejam claras, a obra também trabalha suas semelhanças, desde o desrespeito à dignidade e costumes dos nativos, passando pela certeza cega que possuem diante da guerra, até a desumanização do outro por questões de crença e ideologia, tema que segue atual.

A construção de mundo é um dos grandes acertos da obra, fazendo com que Vortis ganhe vida aos olhos do leitor pelas ricas descrições de ambiente e variedade de cenários. O autor dá um ar grandioso ao planeta, ao escrever sobre as redes de túneis e cavernas habitadas por Menopteras e Zarbis, e sobre os verdejantes bosques de Vortis. Bulis merece créditos por dar organicidade às criaturas da trama, vide as descrições dos voos das Menoptera (mariposas humanoides) ou dos movimentos dos Zarbi (enormes formigas bípedes), ao mesmo tempo em que faz referências sutis a natureza artificial que esses seres tinham na TV, vide o trecho em que Victoria improvisa uma fantasia para se passar por uma Menoptera e se infiltrar na base imperial como escrava.

Bulis mantém a narrativa em constante movimento, nunca perdendo o interesse do leitor. Claro, o fato de boa parte da obra ser focada no conflito entre três grupos diferentes significa que temos o Doutor e seus amigos em uma sucessão de capturas, fugas, e novas capturas  (vício comum na Série Clássica, inclusive), mas felizmente há uma variedade de situações e consequências dentro dessa dinâmica que impede a história de se tornar cansativa. O romance também traz conceitos de ficção científica muito interessantes para embasar o seu comentário antiguerra, ao apresentar os dois lados do conflito utilizando uma máquina supostamente capaz de medir a pureza moral ou ideológica de alguém, o que se torna uma metáfora sobre como o fanatismo é capaz de desumanizar e alienar as pessoas, independente do viés, e como qualquer coisa pode ser instrumentalizada para fins políticos.

 Em seu terço final, quando o autor revela o vilão responsável por estar piorando ainda mais a guerra entre os republicanos e os imperiais, a obra aposta em um nível de ação ainda mais épica, adotando também certa dose de horror lovecraftiano nessas passagens, com direito a zumbis e monstros abissais. Entretanto, como já havia acontecido (e voltaria a acontecer) em outros trabalhos, Christopher Bulis insere uma reviravolta nas páginas finais, que abre uma nova linha narrativa, que ainda que não surja do nada e converse com os temas da obra, soa deslocada do resto da trama em termos de tom, tendo pouco espaço para se desenvolver.

Bulis reproduz nas páginas a dinâmica quase familiar que este time da TARDIS tinha na TV. O Time Lord de Patrick Troughton está perfeitamente representado, com o seu jeito atrapalhado trazendo momentos divertidos para a leitura, mas sem perder de vista a veia trapaceira e até manipuladora desse Doutor. Jamie também está bem retratado, e gosto como a obra põe o escocês se identificando com a luta por liberdade das Menoptera, devido a luta de seu próprio povo contra os britânicos. Por fim, o romance utiliza as origens vitorianas de Victoria para mostrar o crescimento da Companion em suas viagens, com a jovem constatando a natureza opressora do colonialismo.

Os personagens originais cumprem bem suas funções, mas percebe-se que ao trabalhar com espelhamento nos dois núcleos dos Rhumon, Bulis cria contrapartes óbvias demais. Ambos os lados têm um fanático disposto a sacrificar tudo e todos pelo que acredita; um líder um pouco mais ponderado que passa a perceber a futilidade do conflito e o seu preço em sua moral e vida pessoal; um jovem tentando entender as suas crenças e convicções políticas, e por aí vai. Entende-se por que o autor opta por esse paralelismo, mas ainda que tenham as suas particularidades, tamanho espelhamento na jornada dos personagens desses núcleos tira um pouco da naturalidade da narrativa e da singularidade dos personagens. Os Menoptera já são melhor servidos, e ainda que não tenham as áreas cinzentas dos s Rhumon, ganham um ponto de interesse pela forma com que Bulis trabalha a sua cultura e até a sua fisiologia, em mais um metacomentário.

Crepúsculo Dos Deuses é um livro que vale a leitura, conseguindo captar com competência o espírito da era do 2º Doutor, ao mesmo tempo em que acrescenta à narrativa uma escala que dificilmente teria sido alcançada na TV dos anos 60. Está longe de ser um trabalho irretocável, pois existem problemas na forma como Bulis constrói o clímax com uma reviravolta que, ainda que não surja do nada, não parece se integrar tão bem ao conjunto da obra. A forma como o livro estabelece os paralelos entre os dois grupos de Rhumon também acaba soando mais didática do que precisava ser, mesmo reconhecendo que tais paralelos eram absolutamente necessários. Mas apesar desses tropeços, o romance de Christopher Bulis entrega uma aventura engajante, com temáticas sobre um mundo dividido pelo ódio sendo tristemente atuais. A obra consegue pegar as boas ideias que haviam sido apresentadas na TV em The Web Planet, e entregar uma sequência com uma narrativa independente do arco que lhe deu origem, mas ainda coerente com ele, e que se beneficia da linguagem da literatura para entregar um mundo alienígena vibrante com o qual conseguimos nos importar. Para um livro que se propõe a revisitar uma das histórias mais impopulares de Doctor Who, o resultado é bem satisfatório.

Doctor Who: Crepúsculo Dos Deuses (Twilight Of The Gods) – Reino Unido, 19 de Setembro de 1996.
Virgin Missing Adventures # 26
Publicação Original: Virgin Books
Autor: Christopher Bulis
299 Páginas

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