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Crítica | Doctor Who: Coração Ardente, de Dave Stone

por Rafael Lima
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Equipe: 6º Doutor, Peri.
Espaço: O Hábitat em Daimos.
Tempo: 3174.

Em meados da década de 1990, a Editora Virgin tinha os direitos de publicação de romances originais do Juiz Dredd, personagem dos quadrinhos britânicos criado por John Wagner e Carlos Ezquerra em 1977. Com o lançamento da versão cinematográfica de Dredd, em 1995, estrelada por Sylvester Stallone, a Virgin decidiu encomendar um romance crossover do Juiz com outra marca de ficção científica que a editora mantinha os direitos na época, Doctor Who, escalando para a tarefa o autor Dave Stone, que já havia escrito livros para as duas séries. Com o fracasso de crítica e público de O Juiz, a Virgin cancelou o crossover. Ainda assim, mesmo que não seja um crossover oficial, Coração Ardente não nega as influências das histórias de Dredd em sua narrativa e construção de mundo, bastando apenas olhar a capa para perceber que Stone simplesmente mudou o nome de alguns personagens e contextos para a publicação de seu crossover abortado.

A trama, situada entre os eventos de Vengeance On Varos e The Mark Of The Rani, se passa no ano de 3174, no Habitat, uma antiga colônia do agora decadente Império da Terra localizada na superfície do Asteroide Daimos, que orbita o planeta gasoso de Titânia. O Habitat é comandado com mão de ferro pela Igreja do Juízo, com a força de vigilância conhecida como os Juízes tentando controlar a tensão cada vez maior entre os seres humanos, que formam a maioria da população, e outras centenas de espécies alienígenas que ali vivem. O 6º Doutor e Peri chegam no meio da chamada “Estação Louca”, um período do ano em que os índices de violência na colônia chegam á níveis incontroláveis, por motivos desconhecidos. Enquanto Peri se vê envolvida no Movimento do Fogo Branco, que planeja tirar a Igreja do poder, o Doutor descobre que o insano líder da Igreja do Juízo guarda segredos que podem desestabilizar completamente o frágil equilíbrio do Habitat.

Como dito acima, embora esse romance não seja oficialmente um crossover de Doctor Who com Juiz Dredd, a influência da série em quadrinhos é óbvia desde a capa, que traz uma imagem do Juiz Joseph Craator com um uniforme muito parecido com aquele que o Juiz Joseph Dredd usa nos quadrinhos. Para uma história que tenta emular a Mega City One de Dredd, o Sexto Doutor e Peri se mostram as escolhas perfeitas para estrelar o livro, já que o ambiente combina com o caráter distópico e quase niilista que as aventuras da dupla possuíam na série de TV. Coração Ardente, entretanto, não é uma cópia carbono das histórias de John Wagner, pois Stone aproveita o fato da obra ser uma aventura independente do Doutor para inserir elementos absurdos, dignos de Douglas Adams, como uma passagem envolvendo um protesto vagamente baseado na Conspiração da Pólvora, que envolve o lançamento de dezenas de vacas explosivas nos céus do Habitat; ou a presença de personagens como o alienígena anelídeo Queegvogel Duck, que se comunica através de versos recitados em uma linguagem formal.

Dave Stone constrói de forma competente o mundo onde sua história se passa, fazendo com que o leitor consiga mergulhar e visualizar a sociedade cosmopolita à beira do colapso que é o Habitat, assim como a tensão entre os seres humanos e as diversas espécies alienígenas que vivem na colônia (algumas delas velhas conhecidas dos fãs de Doctor Who). A prosa do autor, entretanto, pode soar esquizofrênica em alguns momentos, com o narrador fazendo alguns comentários irônicos de forma muito esporádica durante a obra, o que acaba causando certo incômodo, pois gera a sensação de falta de unidade na prosa. A trama, por sua vez, se desenvolve com certa lentidão, o que é um pouco incômodo para um livro com uma contagem relativamente baixa de páginas, embora consiga entregar um terceiro ato sólido, que dá um desfecho coerente para todos os personagens da narrativa.

Dave Stone consegue captar bem este time da TARDIS, transpondo com competência a personalidade ácida e a intensidade do Doutor de Colin Baker para as páginas, especialmente no 3º ato, quando o Time Lord faz um discurso cheio de fúria para dois grupos militares que se enfrentam. Peri Brown é retratada de forma igualmente fiel a como foi vista na televisão, com o leitor conseguindo imaginar perfeitamente Nicola Bryant lendo as linhas de sua personagem neste romance. O autor também lança um interessante olhar para a conturbada relação entre o Time Lord e a jovem americana, fazendo a dupla colocar a sua parceria em perspectiva.

Peri, que ainda guarda luto pelo Quinto Doutor, começa a se perguntar por que segue viajando com um homem que constantemente a diminui e faz pouco dos seus sentimentos, gerando um afastamento do Gallifreyano que leva a garota a procurar apoio onde não deve. O Sexto Doutor por sua vez, também passa a se questionar sobre o seu comportamento em relação à sua companion, percebendo que inconscientemente, talvez a culpe por sua mais recente regeneração. Este conflito é tratado de forma sutil e sensível pelo autor, com a dupla chegando a um entendimento no fim, sem nenhum diálogo expositivo ou elemento que traia a natureza abrasiva (embora muitas vezes mal colocada em minha opinião) da dinâmica deste time da TARDIS.

Os personagens originais da obra, entretanto, não são tão bem trabalhados. Craator claramente desempenha o papel que seria desempenhado por Dredd na versão original do romance, sendo, portanto representado como um homem com um senso extremamente rígido de justiça e, assim como sua contraparte dos quadrinhos, nunca tira o capacete que esconde o seu rosto. O personagem funciona em sua simplicidade e possui uma dinâmica divertida com sua postura sombria e durona contrastando fortemente com o comportamento alegremente cínico do Doutor, embora eu ache que esse aspecto poderia ter sido melhor explorado pelo autor. Os vilões da trama são representados pelo Inquisidor Garon, que é a principal força política do Habitat, e Avron Jelks, o carismático líder do movimento do Fogo Branco, que acaba aliciando Peri para sua causa.

Tratam-se de personagens extremamente rasos, que não conseguem transmitir o nível de ameaça que a obra sugere que eles têm. Jelks acaba sendo especialmente frustrante, pois apesar da premissa interessante (e super atual) de um líder popular que utiliza insatisfações sociais para inflar um sentimento de ódio e xenofobia em seus seguidores, o personagem acaba sendo construído de forma excessivamente caricata, com o autor praticamente copiando a biografia de Adolf Hitler como background do personagem. Talvez funcionasse se a narrativa adotasse um tom mais satírico e, em alguns momentos, o livro parece flertar com esse tom, mas nunca o abraça realmente.

Coração Ardente é um romance curioso que vale a leitura, por conseguir transmitir de forma fiel a atmosfera da 22ª Temporada da Série Clássica, onde a trama se situa, ao mesmo tempo em que traz uma interessante discussão sobre como discursos de ódio podem ser disfarçados por demandas sociais. Mas parece que ao abandonar a ideia do crossover oficial com a franquia Juiz Dredd, para tornar a obra um produto 100% Doctor Who, algo se perdeu, com o livro ficando no meio do caminho entre uma abordagem mais séria ou uma visão mais satírica de futuro distópico, dando ao livro certa crise de identidade que prejudica o resultado final.

Doctor Who: Coração Ardente (Burning Heart)- Reino Unido. 16 de Janeiro de 1997.
Virgin Missing Adventures # 30.
Autor: Dave Stone.
Publicação Original: Virgin Books.
162 Páginas.

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