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Crítica | Doctor Who: Contos da TARDIS (2023)

Uma belíssima homenagem aos companions da série.

por Luiz Santiago
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Tales of the TARDIS é uma série spin-off de Doctor Who, criada na linha de produções do aniversário de 60 anos e lançada no Whoniverse (BBC iPlayer), em 1º de novembro de 2023. A ideia do projeto foi fazer uma homenagem aos companheiros do Doutor durante a Série Clássica, e mesclar encontros entre eles, seus amigos de viagens ou mesmo o Time Lord com quem perambularam pelo espaço, a uma reflexão muitas vezes solene sobre a vida, sobre o passado, o presente e o futuro. Esses encontros não são fixados como algo que podemos interpretar de uma única forma, ou seja, alguns deles podem ter sido um sonho, outros são claramente expostos como encontros de verdade (inclusive com o início de novas aventuras entre Doutor e companion). Já outros são sugeridos como uma memória ativa, um mundo à parte nas entranhas de uma versão da TARDIS, quase uma fantasia acoplada à ficção científica.

No episódio de encontro entre Jamie (Frazer Hines) e Zoe (Wendy Padbury), da Era do 2º Doutor, o arco que serve como ponto de partida para a reflexão compartilhada é The Mind Robber, e a dupla aborda a sua Era com base na inocência e camaradagem cômica, brincalhona e lúdica que marcou a jornada de Patrick Troughton no papel. A presença da flauta do Doutor, a memória carinhosa de Jamie em relação a Victoria e a elegância e garbo de Zoe são destaques deste capítulo (assim como os figurinos dos dois personagens, que são os melhores de toda a série, tanto que escolhi a imagem deles para ilustrar o destaque desse texto), o único escrito por Pete McTighe — mesmo autor de episódios como Kerblam! e Praxeus –, e uma das direções que eu mais gosto de Joshua M.G. Thomas na série (sim, ele dirige todos os seis episódios aqui).

O episódio de abertura do show é também o único escrito por Russell T. Davies, e já começa a série fazendo uma referência bastante pesada à morte de Adric, no arco Earthshock, puxando o tom das discussões. Pensando bem, todos os episódios de Contos da TARDIS possuem um tom solene, referem-se à morte de alguns companheiros, de alguns Doutores, de alguns amores (em qualquer âmbito) da vida dos companions, e isso torna o show uma produção mais adulta ligada a Doctor Who, num enredo geral que procura lidar com momentos difíceis erguendo a cabeça e nunca deixando a luz da esperança e da beleza da vida se apagar.

Essa versão de Tegan (Janet Fielding) mais velha é muito interessante para mim, e milagrosamente eu gostei bastante dela (assim como gostei de sua aparição em The Power of the Doctor). Eu odiava a personagem na Série Clássica, mas nessas aparições dela mais velha, eu tenho uma impressão bem diferente de sua persona, consigo gostar da interpretação da atriz e do tipo de ímpeto comportamental da personagem que, na Clássica, era só a mais pura e absoluta chatice e birra com o coitado do 5º Doutor (Peter Davison), que, a propósito, é o meu Doutor menos favorito de todos. Ele, por sinal, é outro que cresceu para mim fora da série. Não é em todos os áudios, mas em muita coisa da Big Finish eu realmente acho Davison incrível, tag que também atribuo à sua presença nesse episódio de TOTT.

O capítulo com o 6º Doutor (Colin Baker) e Peri (Nicola Bryant) tem como impulso de memória e de narrativa um arco com um enredo bastante crítico, Vengeance on Varos, e o texto escrito pelo ótimo Phil Ford (o primeiro de três textos nessa série), ressalta bastante o papel dado à mulher naquele momento de viagens com o Doutor, nos anos 80. Isso é muito presente aqui e também no episódio com Ace, mas sinto que neste com o 6º Doutor, o tom de abordagem é mais tenso, ao mesmo tempo que exalta imensamente a vida posterior de Peri, como uma rainha guerreira que fez muita coisa, se tornou conhecida e temida em muitos lugares, e agora está de volta à TARDIS, pronta para mais uma linha de viagens ao lado de seu amigo de velha data. A propósito, a atuação de Baker nesse episódio é muito gostosa de acompanhar. Ele serve como um conselheiro, um sábio com umas pontadas de ironia e disfarçada irritabilidade. Mantém a base do 6º Doutor que conhecemos, mas com um charme que o ator teve tempo suficiente para construir, ao lapidar seu papel em aventuras da Big Finish.

Este episódio com Clyde (Daniel Anthony), companheiro de uma companheira do Doutor em As Aventuras de Sarah Jane, é um dos que provavelmente mais dialogam com o público. O roteiro tem o cuidado de manter todas as lembranças vindas com a experiência de Jo (Katy Manning) em uma saudosa e respeitosa ligação com o 3º Doutor, conversando com Clyde sobre a vida, sobre as conquistas, os amores, a família e como é importante afastar-se temporariamente da fantasia e das aventuras malucas e assumir compromissos particulares, viver os próprios sonhos e dizer aquilo que se sente no coração para as pessoas certas. O ponto de partida para a memória, dessa vez, é o arco The Three Doctors, o que dá a oportunidade para Jo falar sobre as maravilhas de ter conhecido alguém muito importante, em várias versões; e, anos mais tarde, encontrar ela mesma o amor de sua vida, seguir militando pela causa ambiental e chegar à maturidade feliz e completa, mas também cheia de saudades. O final, exatamente como no episódio seguinte, tem um encontro que aproxima a narrativa toda da fantasia, do milagre dos sonhos, do impossível. Eu não sou exatamente muito fã desses dois momentos, mas não chego a desgostar deles. E sim, entendo perfeitamente a intenção de sua presença na série e posso compreender a beleza e singeleza que trazem consigo.

No último episódio escrito por Phil Ford, temos em cena mais dois companheiros, desta vez, Vicki (Maureen O’Brien) e Steven (Peter Purves), lá da Era do 1º Doutor. Em diversos aspectos, este é um episódio irmão daquele com Clyde e Jo, mas agora, sem uma relação de tutela e conselhos entre uma pessoa mais velha e outra bem jovem. Agora estamos falando de dois companions maduros, que já viveram muito e querem partilhar acontecimentos do passado: os bons e os ruins. O ponto de partida para a reflexão é o arco The Time Meddler, e a escolha foi muito propícia, porque a conversa entre esses amigos e antigos companheiros de viagem gira em torno das peças que o tempo prega na gente, da nossa percepção às vezes bagunçada do tempo e como, de vez em quando, a gente também tenta manipular e enganar o tempo. De certa forma, há uma linha metalinguística aqui, e isso recebe um aproveitamento elogioso do roteiro e uma figuração marcante por parte da dupla de atores. Talvez o mais “teatral” dos episódios da série.

Neste segundo e último episódio escrito por Pete McTighe, fechando a série Contos da TARDIS, temos o 7º Doutor (Sylvester McCoy) e Ace (Sophie Aldred) protagonizando um dos diálogos mais maduros da série. É um episódio que retoma a complicada caminhada de Ace ao lado do “antigamente gallifreyano“, e o roteiro faz muitas referências ao amadurecimento do 7º Doutor, à mudança de sua personalidade e à ideia de que ele teve sim os seus maus momentos como pessoa e também como vítima de vilões e forças externas, em suas viagens solo ou acompanhado. O ponto de partida para toda a essa reflexão é o arco The Curse of Fenric, que tem uma importância muito grande para Ace e que faz com que ela questione caminhos escolhidos, ao mesmo tempo que celebre tudo o que ela construiu nesses anos todos fora da TARDIS. A cena com ela ajudando o Time Lord a pilotar a TARDIS é muito bacana; coloca os dois amigos em pé de igualdade e familiaridade com a nave, e indica uma Nova Era para a dupla. É um final de aquecer o coração. [Nota: há uma fala do Senhor do Tempo nesse episódio sobre a bi-regeneração que eu vou fingir que não existiu e nem vou me preocupar ou pensar muito, porque não quero começar a odiar RTD e nem essa ideia antes mesmo de iniciar sua temporada oficial. Vamos dar tempo ao tempo].

Tales of the TARDIS foi um grande presente para os fãs de Doctor Who. O presente que os Especiais de Aniversário não nos deu. É uma série madura, com um texto mais reflexivo, atuações maravilhosas e um desenho de produção que é de cair o queixo. A ideia de uma “TARDIS de memórias” e a estética da nave nessa situação, trazendo uma mistura “organizadamente bagunçada” de pedaços de cada um dos Doutores, é algo verdadeiramente mágico e tocante para nós. A belíssima direção de fotografia também ajuda a construir toda a magia, e o resultado dessa conjunção de fatores é uma celebração da humanidade, da vida e das memórias dos que se foram e dos que ainda vivem e estão lutando para transformar o mundo e o Universo em um lugar melhor. Um deleite de spin-off!

Doctor Who: Tales of the TARDIS (Reino Unido, 2023)
Direção: Joshua M.G. Thomas
Roteiro: Russell T Davies, Pete McTighe, Phil Ford, Pete McTighe
Elenco: Peter Davison, Janet Fielding, Frazer Hines, Wendy Padbury, Colin Baker, Nicola Bryant, Katy Manning, Daniel Anthony, Maureen O’Brien, Peter Purves, Sylvester McCoy, Sophie Aldred
Duração: 6 episódios, com cerca de 15 min. cada um

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