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Crítica | Doctor Who: Combat Rock, de Mick Lewis

Os muitos canibalismos em uma mal organizada história sobre os horrores da guerra e do colonialismo.

por Rafael Lima
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Equipe: 2º Doutor, Jamie, Victoria
Espaço: Planeta Jenggel
Tempo: Futuro Distante

Muitas vezes, o universo expandido permitiu a abordagem de temas mais gráficos e (ou) adultos do que os tratados na TV. Mick Lewis, que escreveu o romance Trapos é o maior exemplo disso, já que em seu livro anterior para a série, entregou uma história de terror com altas doses de sexo, drogas e violência. Além disso, o autor escolheu situar o seu macabro Folk Horror em um dos períodos mais solares do show, o auge da era UNIT. Pois com Combat Rock, o seu segundo livro para Doctor Who, Lewis mantém o horror grotesco e niilista de sua primeira obra, mais uma vez aplicando-o a um período relativamente inocente da série. 

Na trama, situada entre os arcos The Ice Warriors e The Enemy Of The World, a TARDIS chega ao Planeta Jenggel em meio a um violento conflito entre as forças coloniais da Terra e guerrilheiros locais que lutam pela liberdade do planeta. Para piorar a situação, uma força ancestral despertou no coração das matas de Jenggel, fazendo os mortos voltarem à vida. Após serem sequestrados por guerrilheiros, o 2º Doutor, Jamie e Victoria precisam tentar sobreviver em meio aos horrores de uma guerra sangrenta e das perigosas feras e tribos canibais que habitam o planeta. 

Inspirando-se no clássico Coração Das Trevas, de Joseph Conrad, e nos filmes de canibal exploitation dos anos 1970, Combat Rock é um horror de sobrevivência, cujas situações e núcleos são amarrados por um fiapo de trama. Mas é preciso elogiar o trabalho de construção de mundo do autor, que sem grande exposição, faz com que o leitor se sinta dentro de Jenggel, explorando diferentes ambientes de forma orgânica e imagética, com descrições ricas. É óbvio que Lewis tem interesse no horror chocante e visceral, e um dos méritos do autor é a sua habilidade em criar passagens incômodas e perturbadoras de violência, como aquela em que um missionário é forçado a se alimentar de cérebro humano. Da mesma forma, Combat Rock é permeado por um claro discurso anticolonialismo, com o planeta Jenggel sendo uma metáfora óbvia para países colonizados da Ásia, África e América que passaram por extermínios e apagamentos culturais. Não é surpresa, portanto, que o autor se mostre mais simpático aos guerrilheiros revolucionários do que as forças do governo, ainda que deixe claro que nesse tipo de conflito, todos tem as mãos manchadas com sangue inocente.

Apesar das qualidades, Combat Rock padece de falta de foco narrativo, além de não dar um único arco dramático coerente para qualquer personagem. A construção de uma narrativa caótica em que várias tramas diferentes se desenrolam parece um movimento consciente de Lewis, pois nem todas as linhas narrativas do romance se cruzam, e uma série de ideias, conceitos, e situações são jogadas para benefício da construção de mundo e não para o desenvolvimento narrativo ou de personagens. Tal opção faz com que os desfechos apresentados soem anticlimáticos ou apressados, pois a obra não dá espaço para seus plots respirarem, fazendo com que briguem pela atenção do leitor. 

Faltam também personagens com quem o leitor se importe. Lewis é ótimo na construção de atmosfera e situações horríveis, mas o terror só é efetivo quando nos importamos com as pessoas em risco. Muitos personagens são esquecíveis, vide o grupo de turistas sequestrados pelos guerrilheiros, fazendo com que o leitor se esforce para lembrar quem são. Outros personagens são mais marcantes, mas só por serem clichês reforçados à exaustão; como duas prostitutas que passam a maior parte do tempo brigando uma com a outra, ou os mercenários niilistas em missão para a Terra, que ficam discutindo sexo e violência pelo valor de choque.

Quanto ao 2º Doutor e seus Companions, embora o autor capte com competência a dinâmica deste time da TARDIS, ficamos com a sensação de que o trio é completamente supérfluo. Não que o 2º Doutor tivesse que solucionar todos os problemas de Jenggel, pois Doctor Who já nos trouxe ótimas histórias onde tudo o que o Doutor e seus amigos podem fazer é sobreviver. Mas todo o horror e injustiça com que os personagens se deparam não gera qualquer conflito mais significativo. O mais frustrante é que esses conflitos são sugeridos, mas nunca são levados adiante. A ideia de Victoria (sendo uma garota privilegiada da Inglaterra vitoriana) colocando em xeque as suas crenças a respeito do colonialismo e “processo civilizatório” é ótima, mas é tratada em uma linha, se muito. Da mesma forma, o conceito de Jamie impactado com a insanidade da guerra sobrepujando noções de certo e errado é um conceito para lá de interessante, e se comunica com a jornada dramática do Companion na TV como um guerreiro que aprende a ser menos bélico, porém, mais uma vez, isso é apenas sugerido, nunca tornando-se um arco de fato. Quanto ao 2º Doutor, embora o seu confronto com o  vilão Krallik lhe dê um momento de brilho, tal passagem soa deslocada do resto da obra, com esta linha narrativa sendo sufocada no caos de enredos trazidos por Lewis.

Como a investida anterior de Mick Lewis no universo de Doctor Who, Combat Rock é uma entrada corajosa e ambiciosa da linha Past Doctor Adventures, que tenta discutir colonialismo e a bestialidade da guerra em uma história de terror sangrenta e niilista com zumbis; canibais; e soldados psicóticos. Mas infelizmente o autor se perde diante das muitas ideias que tem para a sua história, não conseguindo estabelecer um fio condutor narrativo ou emocional para o romance. Diferente do que muitos podem pensar, a violência e o conteúdo sexual do texto não são o problema, pois o livro justifica o uso desses recursos além do valor de choque. Mas se esquece que mesmo uma obra de horror pessimista e anárquica precisa permitir que sintamos algo pelos personagens; do contrário, acabamos por nos tornar insensíveis ao horror, por mais criativo e repulsivo que ele seja.

Doctor Who: Combat Rock – Reino Unido. 01 de Julho de 2002
Autor: Mick Lewis
BBC Past Doctor Adventures #54
Publicação: BBC Books
288 Páginas

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