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Crítica | Doctor Who: Colheita de Sangue, de Terrance Dicks

Terrance Dicks se equilibra entre charmosa homenagem ao Noir e horror gótico autoindulgente.

por Rafael Lima
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Equipe: 7º Doutor, Ace, Bernice “Benny” Summerfield, Romana II
Espaço: Chicago, “Planeta Vampiro” (E-Space), Gallifrey
Tempo: 1929, Século 32  

Há duas tramas principais que guiam Colheita De Sangue, livro escrito por Terrance Dicks para a linha Virgin New Adventures. A primeira é uma homenagem ao cinema e à literatura Noir, em uma aventura cheia de arquétipos do subgênero na Chicago cheia de gângsteres da Lei Seca dominada por Al Capone. A segunda é uma sequência do arco de TV State of Decay, que, tal como a história televisiva, é um tributo às clássicas histórias de vampiros. Dicks divide a obra em dois blocos que permanecem praticamente independentes, com a principal conexão entre eles sendo feita por uma figura que manipula os eventos para causar guerras nesses cenários. O autor domina bem os dois plots, mas é provável que o leitor, assim como eu, vá acabar se afeiçoando mais a um núcleo do que ao outro. 

Na trama, na Chicago de 1929, o detetive particular Tom Dekker é contratado pelo famoso Al Capone para investigar um novo player no negócio de contrabando de bebida ilegal conhecido simplesmente como O Doutor. A investigação leva Dekker a se unir ao Doutor e a sua jovem guarda-costas, Ace, para impedir que uma guerra de gangues saia do controle. Enquanto isso, em outro universo, a Professora Bernice Summerfield chega a um planeta que no passado, já foi dominado por vampiros, e que agora sofre com a ameaça de uma guerra civil. Enquanto Bernice une-se a uma velha amiga do Doutor para impedir o conflito, um antigo mal que todos julgavam ter sido destruído espreita na escuridão.

É interessante observar que os dois núcleos centrais do livro não só possuem cenários e tons distintos, mas em muitos momentos também são escritos de forma diferente. Os trechos de Chicago, se entregam a influência do Noir, apresentando parte deste núcleo através da perspectiva do cínico detetive Tom Dekker. É uma manobra inteligente do autor, já que a narrativa em 1ª pessoa que não só ressignifica personagens conhecidos dentro dos arquétipos noir (vide Ace fazendo às vezes de Femme Fatale), como torna o elenco da TV mais enigmático, mas ainda deixando divertidas piscadelas para o leitor, vide a sugestão que a cerveja que o Doutor está vendendo está sendo fabricada na piscina da TARDIS. Os personagens regulares também funcionam muito bem dentro deste cenário, e honestamente, não consigo imaginar nenhuma outra encarnação do Doutor se encaixando tão bem no papel moralmente cinzento de um contrabandista de bebida quanto o 7º Doutor de Sylvester McCoy.

A ambientação é outro grande acerto do romance, por conseguir mergulhar o leitor no universo do período da era dos gângsters, com passagens evocativas passadas em elegantes bares ilegais, e boas sequências de ação envolvendo tiroteios que evocam a violenta mítica do período. Além das referências ao Noir e ao cinema de máfia, a Chicago do período é retratada como um ecossistema sócio-político delicado, onde a venda de álcool sustenta os poderosos, mas é publicamente atacada por eles por razões políticas. Nesse sentido, Dicks usa bem a figura histórica de Al Capone, o mafioso que dominou o crime organizado da cidade na época, que aqui surge como um líder respeitado e temido, que se esforça para manter a paz (porque guerra e ruim para os negócios), mas que claro, não teme sujar as mãos, como fica claro em uma cena que homenageia diretamente o clássico Os Intocáveis (1987), de Brian De Palma. Por fim, estes trechos são onde Agonal, um celestial que se diverte tornando conflitos históricos mais sangrentos do que precisavam ser, funciona melhor, pois o vilão joga com as demandas dessa Chicago onde todos devem mostrar força.

Os trechos do E-Space resgatam a aura gótico-medieval do arco que lhe deu origem, e trazem boas passagens de terror com ataques de vampiros, que se destacam tanto pela ótima condução de suspense quanto pelo uso de bem colocados momentos de choque. O autor expande o mundo que ele mesmo criou em State Of Decay, tornando mais complexa (e, ao mesmo tempo, mais óbvia) a metáfora do arco entre vampirismo e exploração aristocrática, ao introduzir a guerra de classes, e um background sobre como os vampiros se infiltraram na civilização planeta. Trechos como Bernice visitando a Torre dos vampiros de State Of Decay acabam expondo certa autoindulgência da parte de Dicks, ao evocar certa reverência para aqueles episódios, com Benny percorrendo o mesmo caminho que o 4º Doutor de Tom Baker usou na série, descrevendo as marcas que o tempo deixou naquele lugar. 

Na verdade, em muitos sentidos, a obra às vezes acaba sendo tratada mais como um remake espiritual com mais orçamento do arco de 1980 do que uma sequência propriamente dita, com a diferença de que a Virgin permite maior violência que a BBC permitia na TV. Não que não existam passagens criativas neste bloco. Há uma passagem envolvendo um ataque a uma comitiva na floresta que é particularmente tenso e engajante, mas especialmente quando esta parte da trama se encaminha para o desfecho, Dicks parece só reciclar ideias que apresentou na televisão, aumentando apenas a escala de certos eventos.

O que faz os trechos no E-Space realmente valerem a pena é a dinâmica entre Bernice e Romana, mostrando duas mulheres muito diferentes, em um contexto que reforça essas diferenças, se unindo por um bem comum. Bernice é essencialmente uma mulher do povo, uma arqueóloga que se sente mais à vontade pondo a mão na terra do que entre os membros da elite acadêmica, pois nem mesmo o título acadêmico dela é verdadeiro. Romana, por outro lado, embora tenha percorrido um longo caminho desde que começou a viajar com o 4º Doutor em sua primeira encarnação, no fundo, sempre será uma aristocrata ao carregar o orgulho dos Time Lords, gerando assim uma tensão natural pelo plot desse núcleo girar em torno de uma guerra de classes. Assim, é interessante como a arqueóloga e a Time Lady começam a sua aliança se perguntando o que o Doutor viu na outra para que merecesse um lugar na TARDIS, e ao fim de sua aventura, as duas conseguem ver o valor de cada uma. A parceria entre as duas é tão legal, que acaba sendo decepcionante quando o autor não permite que a dupla resolva o conflito no E-Space, tendo que apelar para o Doutor e Ace, o que faz com que Romana, e especialmente Bernice, percam o protagonismo que mantinham até então.

Então vem o movimento mais estranho de Terrance Dicks neste trabalho, que é transformar o ato final do livro, em uma sequência de The Five Doctors (mais um arco escrito pelo autor na TV) ao levar os personagens de volta para Gallifrey. Essa situação não vem do nada, já que ao longo do romance, há passagens onde um culto de Time Lords que planeja libertar o antigo mentor do Doutor (petrificado ao fim do especial de vinte anos da série) observa os eventos em Chicago e no E-Space. Há fatores válidos nessa escolha, pois ela traz uma sensação de círculo completo, ao fazer o Doutor finalmente levar Romana de volta a Gallifrey, além de ser um bom desfecho para o confronto entre o protagonista e Agonal, já que o Doutor só resolve caçar esse celestial, pois os Time Lords se recusavam a fazer algo a respeito sobre as ações do vilão, já que elas não afetavam o tempo de forma grave. Mas esse desfecho em Gallifrey é encaixado de forma atropelada no fim do livro, não tendo a força que poderia ter, por soar corrido demais, e desconexo em termos de tom do resto da obra.

Colheita De Sangue é um livro inegavelmente divertido, mas sinceramente um pouco inconstante. Os trechos situados em Chicago se destacam pela ótima articulação que faz do pastiche de história noir de gangster com os elementos característicos da era do 7º Doutor, enquanto as passagens focadas na trama dos vampiros, ainda que tenham os seus bons momentos, perdem força por denunciar certa falta de criatividade de Dicks, e por não serem tão redondo quanto os trechos na Terra, até pela citada perda de protagonismo de Bernice e Romana. Com certeza é uma obra que vale a leitura, mas acaba deixando a impressão de que, se o autor não fosse tão autoindulgente com o seu próprio legado, o livro poderia ter ido bem mais longe do que foi.

Doctor Who: Colheita de Sangue (Blood Harvest) – Reino Unido. 21 de Julho de 1994.
Autor: Terrance Dicks
Publicação: Editora Virgin.
Virgin New Adventures #28
287 Páginas

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