Paul Magrs publicou Perplexidade e Devoção nas páginas da Doctor Who Magazine um mês antes do lançamento de seu livro Verdigris, com Iris e o 3º Doutor. Isso fez do presente metaconto uma espécie de antecipação de atmosfera para o romance. Todavia, trata-se de um texto que só pode ser melhor aproveitado por quem já conhece um pouco das andanças e maluquices de linha temporal da Time Lady (e tantas outras coisas mais) Iris Wildthyme, além de fazer um grande número de referências a arcos da Série Clássica — de An Unearthly Child, com o 1º Doutor, a The Mawdryn Undead, com o 5º Doutor –, a alguns áudios da Big Finish (The Stones of Venice, por exemplo) e à chegada do 8º Doutor em O Senhor do Tempo; de modo que não se trata de uma obra de fácil entendimento ou aproveitamento por parte de qualquer whovian em início de viagem pelo Universo da série.
Depois, há a questão de linguagem e estilo utilizados pelo autor para conceber este metaconto. Paul Magrs é um escritor muito inventivo, com uma formação literária clássica, assumidamente influenciada pelo Realismo Mágico sul-americano, destacando principalmente as lições de seus autores de referência, Gabriel García Márquez e Jorge Luis Borges (ele mesmo escreveu sobre isso na introdução de sua série Phoenix Court). Entrelaçadas às conversas de Iris com o Doutor aqui, temos observações à la “quebra de quarta parede” feitas por um personagem chamado… vejam só… Paul Magrs! E o acúmulo dessas situações, mais a mistura entre ficção e realidade, tornam a própria ideia de Bafflement and Devotion gostosa e desafiadora (no bom sentido) de se acompanhar.
O personagem Paul Magrs fala sobre como foi convidado para escrever sobre Doctor Who e o impacto que a série teve sobre ele. Já do ponto de vista de Iris e do 8º Doutor (que aqui é companion da Time Lady) acompanhamos uma conversa sobre suas origens. Iris diz que os eventos aconteceram de maneira diferente para ela, e o Doutor está irritado com as afirmações de Iris. Ele quer saber qual versão dos eventos realmente aconteceu. Além disso, conforme o conto avança, vemos que o Doutor está incomodado com o fato de que possui “novas lembranças” sobre suas andanças com Nyssa. Ou seja, este é o momento em que o autor reflete sobre a adição de novas aventuras dos Doutores da Série Clássica feitas pelo Universo Expandido da série, seja através dos audiodramas (The Land of the Dead é indiretamente citado nesse ponto), dos quadrinhos ou dos livros.
A conversa gira em torno do cânone da série e da linha do tempo dos Doutores. E essa escolha é ótima, porque flexibiliza um conceito que eu venho explorando e discutindo desde que comecei a escrever sobre Doctor Who, há pouco mais de 10 anos (escrevo a presente crítica em 30 de novembro de 2022, e minha primeira crítica de um material da série foi publicada em 1º de outubro de 2012): por mais que tenhamos como guia uma linha canônica vinda da TV, é vital para qualquer um que acompanha um programa com um Universo tão grande quanto o de DW, ter a mente aberta para as mais improváveis possibilidades espaço-temporais. Considerar múltiplas linhas do tempo, eventos que o Doutor não se lembra mais e que, de repente, chega ao nosso conhecimento, e mais tantas variações possíveis que, infelizmente, muitos whovians se recusam a aproveitar, não sabendo o quanto estão perdendo. Iris Wildthyme é a personagem perfeita para jogar essas coisas todas na nossa cara.
A personagem fala de suas encarnações com feições parecidas com as de Edith Sitwell, Shirley Bassey, Beryl Reid e Jane Fonda. E também dá um resumo perfeito sobre o que é a sua vida dela e do Doutor. Iris descreve a existência como “histórias sobre paradoxos, viagens no tempo, controle mental, versões virtuais de si mesmo, clonagem, regressão, reencarnação, vegetais falantes, cibernética, regeneração, prolepse, analepse, instabilidades dimensionais alternativas, metatextualidade, alegoria, sátira, fantasia, revisionismo, clichês, plágio e trapaça“. Tem jeito melhor de pensar as muitas viagens e possibilidades de vida para o Doutor, Iris ou até mesmo para personagens tão viajados e inquietos da série, como River Song, Jack Harkness ou Bernice Summerfield? Bem, até pode ter, mas seria limitador, engessado demais. Dessa forma, as viagens pelo tempo e espaço se tornam mais divertidas. E é isso o que faz as aventuras e a própria Iris, como conceito de personagem, ser absolutamente fascinantes.
Doctor Who: Bafflement and Devotion (Reino Unido, 9 de março de 2000)
Autor: Paul Magrs
Publicação original: DWM 289
4 páginas