Aqui temos críticas para as 4 primeiras aventuras da série The Lost Stories. Elas foram publicadas entre novembro de 2009 e janeiro de 2010, todas com o 6º Doutor e Peri Brown como companion. É importante ressaltar que todas elas fizeram parte da primeira programação da 23ª Temporada da Série Clássica, mas a tempestade nos bastidores da BBC, envolvendo Doctor Who, mudaram os planos e forçaram a produção aderir ao modelo de “único arco”, o que viria a ser The Trial of a Time Lord.
Dos roteiros oficialmente escolhidos para a primeira versão da 23ª Temporada, apenas um não recebeu produção da Big Finish: The Ultimate Evil, de Wally K Daly. A aventura não recebeu a versão nas Lost Stories porque o autor pediu um valor muito alto para vender os direitos sobre o roteiro, então a BF desistiu das negociações. Já as aventuras Yellow Fever and How to Cure It (história de Robert Holmes que trazia Autons, Mestre e Rani) e The Children of January (história de Michael Feeney Callan sobre a qual pouco se sabe) também estavam dentre os seriais confirmados, mas não receberam nem novelização nem adaptação em áudio, pois delas temos apenas a ideia ou, no máximo, o rascunho de um enredo, não um roteiro completo.
Vale ainda dizer que estas não foram as únicas histórias consideradas para a “temporada que nunca foi”. Todos os anos a produção de DW na BBC recebia uma boa quantidade de roteiros para escolher o que produzir. A diferença aqui é que estas (exceto Leviathan, que foi enviada para fazer parte da 22ª Temporada) foram oficialmente escolhidas pelo produtor John Nathan-Turner antes de toda a ideia cair por terra.
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The Nightmare Fair
Equipe: 6º Doutor, Peri
Espaço: Blackpool
Tempo: 1986
No final do arco Revelation of the Daleks, o Doutor diz a Peri que a levaria para […]. Pois é, infelizmente, essa parte da história foi cortada, mas originalmente o Doutor dizia “Blackpool“, que é uma cidade da Inglaterra. Na época em que este arco foi filmado, o produtor John Nathan-Turner ou qualquer outra pessoa do “baixo clero” da BBC não fazia ideia que o show seria estraçalhado pelo controlador da emissora e pelo chefe de programação da série, cada um odiando DW de uma maneira bastante íntima e especial. Em Revelation, o Doutor dizia originalmente “Blackpool” porque este seria o lugar onde a 23ª Temporada começaria. Mas os planos mudaram. Colin Baker foi demitido e o vigésimo terceiro ano do programa tornou-se uma saga onde o Doutor foi colocado em julgamento pelo Valeyard. The Nightmare Fair é a história que teria acontecido se os planos não tivessem sido alterados. Com roteiro de Graham Williams, a trama trazia de volta o Celestial Toymaker, vilão icônico da era do 1º Doutor.
A trama é simples à primeira vista e realmente tem muito a cara dessa era do 6º Doutor viajando ao lado de Peri. A chegada dos dois a Blackpool tem, acima de tudo, um objetivo de descanso, e é isso que eles fazem, inicialmente. A adaptação da Big Finish, dirigida por John Ainsworth, captura bem os momentos de ação e experiências do Doutor, com destaque para quando ele experimenta ir em uma montanha-russa, ao que tudo indica, pela primeira vez. A apresentação do Toymaker é progressiva e os “momentos antes” de sua revelação são preciosos. Existe uma certa semelhança com o Mestre, mas isso se dissipa rapidamente, pois a megalomania desse criador de jogos vem à tona e ele exerce aquilo que sabe fazer de melhor: obrigar as pessoas a jogarem seus jogos com as mais absurdas “punições” para quem perde. É neste momento que a história encontra o seu ponto fraco, embora nunca tenha de fato um momento ruim.
A ação do Doutor ao final, condenando esse Guardião do Tempo (bem… um dos) a um loop temporal conduzido por sua própria mente é extremamente cruel, mas sabendo da capacidade do Toymaker em criar realidades e se localizar em lugares diferentes do tempo e do espaço — além do fato dele não se importar com o tempo — esse resultado final é apenas um estágio das coisas no “ponto presente”. Pelo menos para mim, fica clara a indicação de que o personagem conseguiria se livrar de sua prisão temporal e buscar novas pessoas para jogar, em breve.
De certa forma, The Nightmare Fair é uma história decepcionante, especialmente para quem vai ouvi-la (como eu) buscando algo diferente, com maior qualidade, em relação à temporada forçada que a série acabou ganhando no ano de 1986. No geral, estamos falando de uma história com boas intrigas, bom trabalho com o espaço geográfico e representação de um vilão clássico, mas não se enganem: não estamos perto de nada inesquecível ou de uma obra-prima escondida na era do 6º Doutor. De todo modo, eu ainda prefiro esta história do que The Mysterious Planet, que foi exibida em seu lugar, mesmo que em qualidade geral, ambas sejam bastante similares.
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Mission to Magnus
Equipe: 6º Doutor, Peri
Espaço: Planeta Magnus Epsilon
Tempo: Século XXIV
Este arco é uma bagunça. Quando o Doutor e Peri acabam no planeta Magnus e existe uma primeira impressão bem interessante para o Time Lord (que encontra um antigo valentão da Academia de Gallifrey e o Doutor acaba se comportando como uma criança com medo), o espectador aceita a história como uma batalha entre iguais. Um antigo bully e um atual TL maduro e com grande experiência de viagens e feitos pelo Universo. Nada mal.
Em pouco tempo, porém, a dupla de viajantes encontra os garotos Vion e Asam — que o tempo inteiro me lembraram os meninos de The Twin Dilemma — e já aí aparece a primeira pergunta incômoda da trama, que é: qual a necessidade desses dois personagens? Tudo bem que no início eles servem como guias do Doutor e Peri no planeta, que é muito mais gelado do que deveria ser (em breve descobrimos o motivo) mas nada do que eles fazem é essencial. O Doutor e Peri poderiam aprender o caminho e os costumes locais tranquilamente sem eles.
A história já tem um princípio confuso, porque não entendemos o motivo de um Time Lord que o Doutor conhecia ser apresentado para, em seguida, ser afastado da história. Mas aceitamos o mistério e seguimos, até descobrir que Magnus é controlado por uma sociedade matriarcal. E então imaginamos que este será o problema a ser enfrentado. Pouco adiante, percebemos que Sil está no planeta, tentando recuperar os lucros perdidos em Varos. E por fim (ufa!) descobrimos que os Ice Warriors também estão o no planeta, e eles são a causa do frio atípico de Magnus.
Reparem que a proliferação de problemas e “vilões de ocasião” atrapalham o andamento até mesmo na teoria e o espectador vai ficando insatisfeito com as confusões criadas a fim de dar o que fazer a cada um deles. É tudo muito forçado para uma história com um bom potencial, que se tivesse apenas Sil já funcionaria, porque esse vilão é ótimo. Com um bom roteiro, com certeza ele traria bastante trabalho para o Doutor. Sem contar que a interpretação de Nabil Shaban continua incrível e ele jamais perdeu o jeito daquela risada maluca (que disse ter sido tirada da seguinte hipótese: e se uma cobra pudesse rir, como seria a risada dela?).
Eu particularmente achei a resolução da história pobre. Uma vergonha para um bom escritor como Philip Martin. A forma como o Doutor se livra dos Ice Warriors é praticamente jogada no piloto automático, parece o 5º Doutor em seus piores momentos de resolução de um problema! Nesse caso, foi até uma benção que esse troço cheio de vilões não fosse produzido. Se já é complicado em áudio (a história não é totalmente descartável, mas é ruim) imaginem em imagem.
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Leviathan
Equipe: 6º Doutor, Peri
Espaço: Nave espacial Leviathan
Tempo: Século XXV
Em muitos aspectos, essa aventura se parece com aquelas que tínhamos nos primeiros anos de Doctor Who. O ambiente de ação é fechado, o Doutor e sua companheira chegam em um momento de coisas sérias acontecendo e pedaços históricos unidos a muita imaginação vão sendo revelados aos poucos. Há um senso de compromisso tão grande do Doutor que nem parece que estamos falando da sexta encarnação desse Time Lord e nem parece que falamos de uma realidade PARECIDA com a Terra.
A trama aqui ocorre em uma das naves Leviathan, imensos cruzadores que cabiam gerações de pessoas e cujo objetivo era chegar em algum planeta habitável para colonizá-lo. Os primeiros humanos sabiam que não chegariam ao seu destino (há ecos de The Ark aqui) e como é comum nesse tipo de viagem de gerações, muitas coisas se perdem e outras são refeitas para abarcar novos problemas, o que nem sempre é algo bom, como perceberemos nessa saga. Colocando em cena um grupo que o Doutor chama de “Illuminatis do século 22“, os Sentinels of the New Dawn, o roteiro de Brian Finch (aqui adaptado por seu filho, Paul Finch) encena uma Idade Média com todos os mitos, imagens e dramas possíveis, ao menos em uma primeira e rápida batida de olho.
Diferente das histórias absurdamente urgentes e muitas vezes atropeladas do 6º Doutor, esta Leviathan toma o tempo necessário para desenvolver o problema principal e torna isso uma ameaça não só para a tripulação da TARDIS mas também para alguns grupos que a dupla encontra nessa estadia. A condenação dos indivíduos locais ao “seu tempo”, em idade em que começavam a questionar a ordem, é uma das coisas mais chocantes da trama e isso fica ainda mais intenso à medida que o Doutor descobre o que está por trás dessa ceifa a mando de um misterioso “Barão”. Um largo processo de clonagem é exercido ali há muito tempo e há camadas e elos de poder que precisam ser derrubados para que os humanos possam ter liberdade.
O bom da história é que vemos o Doutor e Peri em frentes diferentes de ação, e ambos muito bem eu seus núcleos. A trama só começa a apresentar reais problemas no meio do segundo episódio, quando as supostas “batalhas finais” ou o caminho para essas batalhas, começam a aparecer. A troca de pessoas no poder, a posição do Doutor diante de cada novo líder e o que precisa ser derrubado para se chegar à nova fase parece um estranho amontoado de ideias, quando deveria ter aparecido aos poucos. Claro que isso não faz a história ser ruim, mas é certo que influencia em sua qualidade final.
Assim como nos primeiros anos da série, a despedida do Doutor e sua companheira é acompanhada de uma promessa para modificação local, dentro daquele clima de amizade e um pouco de humor que tão bem conhecemos. Esta seria uma ótima história para constar na 22ª Temporada.
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The Hollows of Time
Equipe: 6º Doutor, Peri
Espaço: Hollowdean (Reino Unido)
Tempo: Anos 1980
Esta, com certeza, é uma história que eu gostaria muito de ver na 23ª Temporada! O Doutor e Peri chegam ao vilarejo inglês de Hollowdean, em 1980. Uma série de coisas acontecem. E tudo parece muito bem desde o início, mas… não. Não é assim que se deve escrever sobre esses eventos. Porque eles não aconteceram assim. Ou, pelo menos, não nessa ordem.
Vocês já sabem o quanto eu sou fascinado por mesclas de linhas do tempo e narrativas que se utilizam do recurso temporal para construir algo interessante. Este é o caso do roteirista Christopher H. Bidmead aqui, que mesmo exagerando bastante na linha que deveria resolver as versões temporais — as idas e vindas que poderiam facilitar tudo para o espectador –, consegue um ótimo resultado, o melhor de todas as histórias previamente selecionadas para a 23ª Temporada que nunca aconteceu.
Na verdade, os eventos do miolo do texto são uma lembrança, uma conversa entre o Doutor e Peri, que falam de coisas que aconteceram com eles na tal vila de Hollowdean. A memória do Doutor estava alterada e os eventos que eles discutem parecem ter acontecido com outra pessoa e só vêem à tona quando alguém fala sobre eles. Já nos primeiros minutos do que deveria ser uma estadia para descanso da dupla (outra igualmente frustrada), percebemos que algo está errado com a memória do Time Lord. Ele recebe flores e que vê uma certa reverência a um personagem que conhecia de outros tempos, o Reverend Foxwell, ou “Foxy” para os amigos.
Um destaque inesperado nessa aventura é o personagem Simon, um garoto que viu umas “criaturas da areia” (os Tractators de Frontios) e que era inteligente demais para obedecer ordens básicas ou não falar a primeira coisa que vinha à mente sempre que estava diante de uma situação intrigante. A interpretação dele fica a cargo da atriz Susan Sheridan, que faz um glorioso trabalho, tendo como ajuda um roteiro que trata o personagem com todas as características de sua idade. Temo que se fosse adaptado para a TV, o papel não teria a mesma graça que tem aqui, pois nenhuma criança teria a qualidade de interpretação de uma Susan Sheridan, mas ainda assim, é um excelente papel, mesmo que houvessem problemas na performance, a composição do personagem seria vista tal como foi concebida.
Os ajustes para o formato de áudio sugeridos por pelo produtor David Richardson funcionaram muito bem na composição da variação temporal, com visitas ao passado, corredor temporal, sobreposição de linhas do tempo e muita “ficção científica raiz”. Como vilões, temos os Tractators e o Professor Stream (anagrama de Master), que foi concebido para ser o Mestre, embora ele não se revele como tal aqui. No entanto, a interpretação de David Garfield sugere perfeitamente a entonação de Ainley e podemos considerar com certeza essa uma aventura do Mestre, mesmo que ele resolva não se mostrar para o Doutor.
Como disse antes, há um exagero na resolução, porque todo o texto já é bem intricado e poderia existir uma pausa nesse ponto, mas não é algo que fere de morte a trama, que continua grande e fazendo jus ao título. Uma pena que não tenha sido transformada em episódio.