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Crítica | Doctor Who: Aprisionado, de Una McCormack

Ciência de abdução.

por Luiz Santiago
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Aprisionado, segundo romance com o 15º Doutor lançado pela BBC Books, é um prato cheio para o leitor que curte surpresas a conta-gotas no desenvolvimento de uma narrativa. Após a decepção que tive com o livro anterior da série (Vermelho Rubi, de Georgia Cook), não tinha muita certeza do que poderia esperar aqui, mas fui tomado de assalto por uma história que se mostrou, além de divertida, realmente impressionante, no sentido mais literal dessa palavra. Ambientado naquele espaço não documentado de tempo entre 73 Jardas e Ponto e Bolha, a aventura traz uma relação mais solta do Doutor com Ruby e deixa a companheira do Senhor do Tempo explorar locais e assumir o protagonismo na resolução de algumas questões, refletindo também na interação entre indivíduos de diferentes espécies e com distintos interesses, temas que são o núcleo deste livro.

Una McCormack sabia exatamente o que estava fazendo quando resolveu brincar com as palavras e deixar inúmeras pistas falsas sobre a aparência e/ou espécie dos alienígenas que o Doutor e Ruby encontram assim que materializam a TARDIS. Mas o mistério e a brincadeira narrativa começam bem antes, já na introdução. Ali, conhecemos a charmosíssima Chirracharr, que vive uma vida pacata com sua família e seus amigos… até que é abduzida por aliens. A experiência descrita pela autora é assustadora, e já nesse início o leitor está assumindo uma porção de rostos, cores e espécies que, em pouco tempo, simplesmente cairão por terra. A entrada do Doutor e Ruby empresta a esse bloco uma atmosfera meio Scooby-Doo, que é a cara do público-alvo do livro, mas que diverte leitores de todas as idades. O fato é que sabemos haver algo de muito estranho no planeta Cavia, e o povo de Chirracharr parece estar no centro das atenções de aliens que abduzem os moradores locais para fins e por motivos não muito claros.

E por incrível que pareça, esta não é a única intriga que temos em cena. Vejam, mais uma vez eu serei o chato que desce a lenha nos capítulos finais de um livro de Doctor Who. Existem exceções? Sim. Mas eu diria que pelo menos metade de tudo o que li de literatura da série cai na exata mesma armadilha de criar um desenvolvimento complexo, instigante, inteligente e cheio de sugestões para uma finalização memorável… até começar a embolar as coisas mais ou menos de qualquer jeito em um único capítulo final, respondendo metade das questões e deixando nuances de desenvolvimento e cadências narrativas de lado. Falei isso tudo para dizer que este livro de Una McCormack, além da primeira grande proposta das abduções e o mistérios das espécies envolvidas (que a gente imagina inicialmente serem humanos), temos pelo menos mais outras duas situações conflitantes, ambas com comentários sociais tão densos e tão firmados na seara da xenofobia, da exploração típica do capitalismo e da “ciência a todo custo” mais experimentos 100% antiéticos e desumanos, que por um breve momento eu imaginei que a Rani estaria envolvida nisso tudo.

Na investigação que se segue, descobrimos que o grande observatório que se destaca no começo da obra não é para estudar as estrelas, mas sim para observar o povo de Chirracharr. Juntando os meteoros misteriosos, os tatus robôs gigantes e as nuances políticas, sociológicas, antropológicas e científicas do experimento descontinuado mais a trágica “extração” que precisa ser feita a seguir, temos uma saga de sobrevivência e identidade que merece ser lida. A abordagem coloca em cena ideias frequentemente debatidas em nossa sociedade, mas a grande linha histórica dos temas é mais antiga e toca em feridas que, infelizmente, ainda não foram curadas pela humanidade. Não tenho grande apreço pelo caminho que leva o Doutor e Ruby ao encerramento da aventura, mas gosto do tom que a autora nos deixa em seus parágrafos finais. Assumir a amargura de algumas situações e lidar com a beleza da esperança para o futuro é uma escolha necessária e que combina perfeitamente com a luta pela vida pela descoberta da existência de si. Um ponto final filosófico para um livro que aparentemente só iria falar sobre sequestros de indivíduos simples por um povo tecnologicamente muito mais avançado.

Doctor Who: Aprisionado (Caged) — Reino Unido, 27 de junho de 2024
BBC New Series Adventures #67
Autora: Una McCormack
Editora: BBC Books
212 páginas

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