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Crítica | Doctor Who: A Igreja da Rua Ruby (The Church On Ruby Road)

Truque de Natal.

por Luiz Santiago
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O fato deste Especial de Natal ser menos ambicioso que os Especiais de Aniversário, faz com que sua proposta de enredo possa ser melhor digerida pelo público, e embora estejamos diante de um produto indistinto em identidade, não dá para negar que serve muito bem como estabelecimento de um terreno fértil para o início oficial de Ncuti Gatwa como o 15º Doutor, e de uma Nova Era para a série. O aspecto natalino está realmente presente aqui, dando sentido à produção. E há também uma linha narrativa familiar bem forte, centrada na figura de Ruby Sunday (Millie Gibson), em torno da qual tudo acontece. É a partir dela que conhecemos o novo Doutor em suas primeiras ações investigativas, mais o mistério em torno dos goblins, que estão transformando a vida de Ruby em uma sequência assustadora de desastres e má sorte.

Como Especial de Natal, The Church On Ruby Road cumpre um papel muito além do protocolar. O fato de termos um ícone de fantasia e folclore no cerne da aventura dá uma cara diferente ao enredo, principalmente porque Russell T. Davies resolveu se aproximar do gênero pelo lado “sombrio e fofo“, algo encarnado na canção dos goblins sobre devorar as diferentes partes de um bebê e fazer os mais variados pratos com as sobras. A ação dessas criaturas, porém, não é agressivamente vilanesca em nosso mundo, de modo que as risadinhas maldosas e as “pegadinhas de azar” que pregam em Ruby e Davina McCall (interpretando a si mesma) fazem o capítulo girar em uma Roda da Fortuna que nunca mostra sua verdadeira face: ora parece apenas uma “maldadezinha inocente”; ora parece uma consequência de vida ou morte.

Gatwa emprega bem toda aquela energia que vimos em The Giggle, mas com direcionamento em vias de amadurecimento, incluindo camadas que gostei bastante. Dá para cravar que temos um bom ator no papel, que consegue se fazer notar de maneira marcante, com traços já bem delineados de sua personalidade inicial — muito mais do que a 13ª Doutora e do que o 14º Doutor, por sinal –, exibindo traços fortes de empatia, grande energia diante do que vê e uma inteligência emocional que combina perfeitamente com as circunstâncias de sua regeneração. Pelo menos nesse naipe de copas, RTD conseguiu estabelecer algo sólido e coerente como consequência da bi-regeneração. Infelizmente não vemos muita ação na TARDIS, mas vemos o Doutor com diferentes (e ótimos!) figurinos e… em distintos blocos de dança e cantoria.

Em relação à primeira dança, apesar de ser isoladamente uma cena bacana (as cores, o movimento de câmera e a atmosfera cênica são boas, apesar de a montagem ser ruim), rejeito-a inteiramente nesse episódio por ser absolutamente dispensável. Ver o Doutor num rolê dançante, curtindo a vida, é algo aleatório e nada acrescenta para o drama do episódio e nem para o personagem, porque a tal leveza que supostamente viria dali é muitíssimo melhor vista, explorada, sentida e compreendida em dezenas de cenas posteriores, especialmente após a junção dele com Ruby, na escada do navio goblin. Já a dança e cantoria no navio, pouco antes do sacrifício da pequena Lulubelle, fazem sentido para todo aquele contexto, de modo que, gostando ou não, é fato que não há justificativa narrativa para dizer que aquilo não faz sentido. Eu não gosto como o diretor Mark Tonderai filma toda a sequência, mas a sua existência não é algo que se possa desprezar.

Por falar em Mark Tonderai, é preciso apontar o fato de que o cineasta tem um cacoete estético horrendo: fazer uma quantidade desnecessária de zoom dramático, passando de plano médio para close no rosto dos personagens, tornando cenas emotivas ou importantes em blocos vergonhosos de novelão da Televisa. Este é um recurso difícil de se utilizar bem em dramas mais sérios, por isso a maioria esmagadora dos cineastas não usa. Notem que é um modelo de filmagem tratado como meme por centenas de pessoas que brincam com o audiovisual; é um recurso parodiado em comédias escrachadas para ressaltar a artificialidade ou bobagem de uma cena; e cá temos um diretor que usa isso pelo menos umas 8 vezes em um episódio de 1h, com um roteiro sobre abandono, amor familiar, busca por origens, tentativa de entendimento de si e batalha contra o próprio apagamento. É muito frustrante, especialmente porque o diretor se saiu muito bem nos episódios que dirigiu para a séria na Era anterior: The Ghost Monument e Rosa. O que aconteceu?

Penso que nas mãos de um diretor melhor, o episódio talvez tivesse um encaminhamento de ritmo interno mais fluído, e nossa percepção de algumas cenas emotivas ou de perigo cresceria bastante. Destaco, nesse ponto, as cenas dentro da casa de Ruby, toda a interação da dupla com os goblins e as cenas com a Sra. Flood, que, a propósito, mudou muito rápido de ideia em relação à TARDIS, não foi? Passou de “tire esse troço da minha calçada“, numa relação meio estranha com um vizinho semita, para uma piscadela metalinguística um pouco forçada: “vocês nunca viram uma TARDIS antes“? Em outros componentes visuais, o episódio goza daquilo que de melhor um bom orçamento pode oferecer, com efeitos, direção de arte e fotografia muito bonitos, especialmente a fotografia, com uma exibição aplaudível de atmosfera visual diferente em cada núcleo dramático. Já o maestro Murray Gold segue com a corda toda, com temas encantadores para cenas e personagens (inclusive fazendo referências musicais a Labirinto – A Magia do Tempo), mas confesso que a edição poderia ter dado melhor atenção à mixagem de som, sem insistir em lançar mão da trilha o tempo todo.

A partir do momento em que o roteiro desenvolve o que está por trás dos momentos de azar, conectando o Doutor com Ruby (uma personagem doce e encantadora), a qualidade do episódio sai da mediocridade para um degrau acima, chegando a uma boa linha de qualidade, mas estacionando repentinamente. A grande presença de cenas dispensáveis é o núcleo de tudo isso, dificultando algumas conexões e minando o foco do texto — notem que tudo referente à avó de Ruby é absolutamente solto; que as cenas com o navio são tratadas como acidentes abruptos; e que o único bloco útil dirigido com primor é a sequência da linha do tempo triste, modificada pelos goblins. Essas interferências travam o desenvolvimento completo do enredo em suas partes mais divertidas, gerado situações enigmáticas demais, como a constatação do Doutor de que “ele possivelmente era o azar” (que frase ruim, especialmente para aquilo que o showrunner propôs para o 15º Doutor, não?) e esperando Ruby chegar à “conclusão certa“… e ir ao seu encontro. Embora eu já esteja acostumado com esses momentos de constatação enigmática e/ou mágica nos roteiros de RTD, nunca vou parar de reclamar deles. É um jeito bem preguiçoso de terminar um episódio, unindo as partes quase que por milagre.

Com uma nova chave de fenda sônica que mais parece outro aparelho (tem gente que odiou, mas eu achei bonita e coerente com o 15º, que até inventou as luvas anti-“mavidade”! — sim, para quem defendeu com unhas e dentes que “era só uma piada isolada” e que “ninguém deveria reclamar” daquela palhaçada, aqui está! Não é algo isolado e, ao que parece, teve sim impacto sobre a linha do tempo da série, podendo ter algum tipo de explicação na “1ª Temporada”, em 2024. Ah, que sabor é estar certo! Para ficar perfeito, só falta RTD reconhecer a estranheza da mudança de etnia de um personagem histórico, com algum tipo de explicação, referência ou alusão de existência. Veremos, veremos. Por hora, estou feliz que as novas diretrizes de produção não tenham derrubado a abordagem da série para o Natal. Sim, é um episódio diferente em concepção, sem muitas definições de identidade, mas com aspectos reconhecíveis da escrita de Russell T. Davies, então estamos parcialmente em terreno conhecido, inclusive nos erros cometidos. A maior parte das coisas, porém, estão bem próximas ou solidamente alocadas na linha da decência. Menos mal. Boa vida ao 15º Doutor!

Doctor Who: A Igreja da Rua Ruby (The Church On Ruby Road) — Reino Unido, 25 de dezembro de 2023
Direção: Mark Tonderai
Roteiro: Russell T. Davies
Elenco: Ncuti Gatwa, Millie Gibson, Davina McCall, Lukas DiSparrow, Anita Dobson, Andy Francis, Michelle Greenidge, Giuseppe Lentini, Angela Wynter
Duração: 56 min.

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