O gosto levemente amargo que A Fera Estelar (The Star Beast) nos deixa, como Especial de 60 anos de Doctor Who, tem muito a ver com a ideia de que, quando uma indústria percebe o quanto de nicho de mercado ela pode engolir ao endereçar-se a um grupo social anteriormente excluído de seus tentáculos, ela fará de tudo para exibir essa nova faceta, mesmo em detrimento de um bom roteiro, de uma concepção artística ou cânone de uma produção solidamente estabelecida, apenas para perfurar bolhas que sempre desprezou, e angariar marketing gratuito através do ódio às suas “novas escolhas”. Para um episódio que vem imediatamente após uma das Eras mais fracas da série, liderada por Chris Chibnall; para um episódio com a missão de comemorar seis décadas de existência de um programa do porte de Doctor Who; e para um episódio que vem na esteira de apresentação de um novo Doutor… com o rosto de outro já conhecido, mais a reintrodução de uma das companheiras mais adoradas da série, A Fera Estelar alcança muito pouco. É um bom episódio? Sim, é um bom episódio. Mas dado o contexto grandioso em que se insere, ser “apenas ok” não basta.
Num exercício simples de reflexão, considerem o que a produção do show conseguiu realizar 10 anos atrás, com menos tecnologia e bem menos recursos, no soberbo The Day of the Doctor. Ou mais ainda, no que se conseguiu realizar 40 anos atrás, no excelente The Five Doctors. E por que não há 50 anos, no muito bom The Three Doctors? A celebração de um aniversário de década, em Doctor Who, mesmo em Dimensions in Time, com intensa insanidade e numa produção de má qualidade, feita para um programa de caridade e num momento em que a série nem existia mais, tinha um conceito de existência que em A Fera Estelar, desaparece. E não, a carta Doctor-Donna não funciona aqui. Qualquer um em sã consciência e sem querer justificar o injustificável sabe muito bem que não é a mesma coisa. Descaracterizada a base de um Especial de aniversário, sobrou a casca nostálgica, marcada pela presença dos fantásticos David Tennant, como 14º Doutor, e Catherine Tate, como Donna Noble. Se estivéssemos em um capítulo simples de transição, em um especial não-comemorativo ou em um episódio simples de “jornada para algum lugar“, talvez, os esforços realizados tivessem um outro resultado. Mas preciso bater na tecla de que A Fera Estelar não é um episódio qualquer. É a comemoração de 60 anos da série. E nem com o 6 de copas encarnado na dupla Tennant-Tate, o adorado (inclusive por mim) Russell T. Davies conseguiu fazer jus à data.
O roteiro aqui é baseado em uma história em quadrinhos bem bacana, escrita por Pat Mills e John Wagner, e desenhada pelo grande Dave Gibbons na Doctor Who Magazine. Em essência, é uma boa adaptação para as telas, especialmente na relação entre Beep the Meep, os humanos e os Wrarth Warriors. No enredo, escancara-se a pergunta que começou a me atormentar ali pelos dez minutos de duração do episódio e que não me largou mais: RTD desaprendeu a escrever diálogos ou isso é só um reflexo do nivelamento bobinho e por baixo que a Disney forçou e, se for o caso, continuará forçando a Doctor Who obedecer? O caso mais gritante pode-se ver na cena mais elegante que Rachel Talalay (uma das minhas diretoras favoritas da série) realiza aqui. O Doutor está sentado, analisando os dados da nave Meep através de um dispositivo novinho da chave de fenda sônica, que eu achei visualmente maravilhoso, mas com uso precipitado, especialmente na cena do escudo. Por ser algo tão diferente, isso precisava de uma apresentação específica e mais cuidadosa, devagar. Pois bem, nesta cena, a diretora pega o ângulo mais incomum e mais interessante possível e captura a chegada de Shirley (Ruth Madeley, numa doçura de atuação), para conversar com o Doutor. O diálogo ali começa no topo de qualidade, mas simplesmente cai das alturas para falas reticentes e de pouca sustentação, quebrando completamente a elegância e serenidade de um dos momentos mais bem dirigidos do episódio.
A presença de Meep e sua relação com os Wrarth Warriors está dentro da esfera do aceitável. Não é a ideal, mas entendo que, ao considerar todas as outras coisas que precisava abordar, RTD se saiu bem com o estabelecimento e o desenvolvimento da situação. O problema vem, como já era esperado por quase todo mundo, na conclusão, porque Donna eventualmente precisaria lembrar-se do Doutor. Por mais que tenha sido um deleite ver a companion agindo com aquela personalidade enérgica de Doctor-Donna (e convenhamos, Catherine Tate é um deleite de atriz, com um cronômetro cômico perfeito), a resolução de seu problema me lembrou o jeito “vale tudo” com que Moffat resolveu a questão do híbrido em Hell Bent. Pode-se argumentar que aqui existe um maior polimento no conceito, e eu até concordo com isso, porque a ideia de binarismo/não-binarismo aplicado a esse caso é boa. Mas e a execução? A dualidade deveria constar aqui tanto como um reforço ao fato de que Rose (Yasmin Finney) é uma jovem trans, quanto ao padrão de pensamento na mente de Donna, dominada por uma versão Time Lord. Na prática, o roteiro inverte o foco e, no escoamento do clímax, cria uma das cenas mais fracas do episódio, que é o momento/justificativa em que Rose e Donna “deixam ir” o restante da energia Metacrise. E não para por aí.
Quando Rose corrige o Doutor por assumir o pronome do vilão Meep, um balde de água fria é jogado na sequência. Primeiro: essa correção era necessária naquele momento, e concebida daquele jeito? Ora, onde foi que já vimos a mesma coisa sendo feita em Doctor Who, mas de maneira correta, no momento certo e numa cena perfeitamente cabível em tom, trama e contexto? Ah, sim, foi quando Bill, em World Enough and Time, maravilhosamente chama a atenção do 12º Doutor para a hipocrisia de gênero que ele mesmo carregava, sustentando o título de “sua espécie”: Time Lords. Aquilo, sim, foi uma boa maneira de falar de pronomes e gênero acertadamente. E eu posso citar ainda mais exemplos de questões ligadas a gênero, papel de gênero, expressão de gênero ou às várias sexualidades não normativas que, na Nova Série, apareceram de modo interessante; de Jack Harkness até (pasme!) o casal gay de Praxeus, passando por Vastra & Jenny, River Song e Bill Potts. A exposição e o tratamento da questão trans, aqui, começou bem, mas se desenvolveu e se encerrou de forma medíocre. Num aspecto fora do gênero, lembra exatamente o trabalho incoerente da questão sentimental entre a 13ª Doutora e Yasmin Khan. É aquela coisa: não basta ter uma boa ideia. Em qualquer arte, é imperativo saber executá-la.
Minha alegria foi recuperada com sucesso no ato final, quando a nova TARDIS apareceu e eu fiquei absolutamente sem reação. Que nave linda! Modelo clássico, limpo (e com “as coisas redondas” nas paredes), bela exibição de possíveis cores e luzes, desenho de produção, painel de controle… tudo ali me encantou, assim como a reação do Doutor e a conversa dele com Donna, um dos poucos momentos do episódio onde o diálogo se entende em boa toada do início ao fim. A propósito, em termos dramatúrgicos, David Tennant está interpretando um 10º Doutor mais velho e marcado por experiências. Sendo o bom ator que ele é, certamente conseguiria construir uma persona que, de fato, fizesse valer o título de 14º Doutor. Nem para a BBC solicitar que ele utilizasse o sotaque escocês, apenas para diferenciar, de alguma forma, essa figura daquela que já conhecemos. Mas mesmo não tendo diferença, eu gostei desse “novo Doutor” e, ao menos no aspecto de personagem, a falta de uma melhor produção não me incomodou de verdade.
Descaracterizado no cânone da série como Especial de aniversário, A Fera Estelar tem seus méritos, conseguindo manter-se acima da média, trazendo um tom diferente da Era Chibnall (fabular, caloroso e íntimo) e abrindo as portas para um momento que me deixa com um misto de preocupação — dado o peso de abordagem convencional, à la Disney –, raiva e curiosidade. RTD retorna a Doctor Who com muitos diálogos fracos e uma exposição da questão de gênero que está longe de ser ideal ou consistentemente elogiosa, mas que pelo menos consegue ter momentos tocantes e bonitos. Para um Especial de 60 anos, é um episódio muitíssimo abaixo de qualquer expectativa coesa e de grande qualidade, à exceção dos efeitos especiais e da qualidade técnica empregada, da fotografia à direção de arte — destaco o quarto de Rose e aqueles bonecos que ela fazia para vender, e também a nova TARDIS.
Nos deparamos com mais uma reformulação do show, o que não é novidade para nenhum de nós. Paira no ar, entretanto, uma dúvida sobre a essência do que virá a seguir. Confio muito em Russell T. Davies, então mantenho minha grande animação para a nova Era, mas a partir dessa experiência mais ou menos frustrada, mesmo com um produto ‘ok‘ em mãos, não diria que estou livre de temores. Minha questão imediata está na explicação para o mistério sobre o rosto repetido, que o roteiro faz questão de reforçar cinco vezes ao longo do episódio. Não é, portanto, uma repetição de rosto à toa. E lá vamos nós outra vez, em mais um mistério no tempo e no espaço. Doctor Who está diferente, e está de volta. Vamos torcer para estarmos entrando em um tempo de vacas gordas e boas histórias.
Doctor Who: A Fera Estelar (The Star Beast) — Reino Unido, 25 de Novembro de 2023
Direção: Rachel Talalay
Roteiro: Russell T. Davies (baseado em história de Pat Mills e Dave Gibbons)
Elenco: David Tennant, Catherine Tate, Yasmin Finney, Karl Collins, Matt Green, Jamie Cho, Ruth Madeley, Harley McEvilly, Max Fincham, Jacqueline King, Dara Lall, Cecily Fay, Robert Strange, Stephen Love, Jordan Benjamin, Vassili Psaltopoulos, Isabella Carey, Ronak Patani, Ned Porteous, John Hopkinson, Anna Martine Freeman, Archie Backhouse, Miriam Margolyes, Andy M Milligan, Chris Robb, Anastasia Zabarchuk
Duração: 58 min.