Equipe: 7º Doutor, Ace, e Bernice “Benny” Summerfield
Espaço: Lua Belial
Tempo: 2157
Engano, romance que trouxe Ace de volta para a vida do 7º Doutor após ela deixá-lo em termos nada amigáveis, tensionou a dinâmica entre o Doutor e sua Companion ao instaurar uma crise de confiança na TARDIS. Afinal, Ace pode confiar no Doutor após ele manipulá-la tantas vezes? O Doutor pode confiar nos obscuros motivos de Ace para voltar a viajar com ele após ter sido transformada por seu tempo na Guerra Dalek? Jim Mortimore e Andy Lane aproveitam o gancho deixado pelo livro anterior da Virgin New Adventures para entregar com A Ascensão de Lúcifer uma obra sobre a confiança que escolhemos ou não depositar uns nos outros. Na trama, Bernice pede ao 7º Doutor para levá-la a Belial, lua do planeta Lúcifer, pois ela quer descobrir por que as pesquisas sobre artefatos alienígenas no local foram interrompidas. Mas pouco depois de o Doutor e suas amigas chegarem à estação de pesquisa, um membro da equipe morre em um suspeito acidente. O Doutor inicia uma investigação para determinar o que aconteceu, e logo fica claro que todos no Projeto Eden escondem algo, inclusive os tripulantes da TARDIS.
Mortimore e Lane escrevem a metade inicial de A Ascensão de Lúcifer como um whodunit, um gênero propício para tratar de segredos e crises de confiança. Os autores não só têm sucesso em trazer personagens carismáticos que funcionam como bons suspeitos, como fazem da investigação um estudo de personagem da vítima, Paula Engado, desnudando a complexa relação que a moça tinha com a sua equipe, que inclui o pai, e uma ex-namorada. É uma construção muito bem feita, pois embora Paula apareça muito pouco, ao fim da leitura, ela se revela a personagem mais explorada pela narrativa.
A obra também faz um bom trabalho em costurar os dramas dos personagens, com os meandros de uma trama de detetive, gerando uma leitura instigante, que dá espaço para boas discussões em diferentes esferas. A atmosfera de desconfiança do livro é tão forte, que nem o Doutor e Ace ficam fora da lista de suspeitos, com ambos tendo oportunidades e motivos para estarem envolvidos na morte de Paula. Nesse sentido, a trama faz uma escolha esperta ao revelar pouco sobre os primeiros dias dos viajantes a bordo da estação de pesquisa e de suas interações com Paula. Dentro dessa dinâmica, é interessante o papel que Bernice Summerfield assume como a única pessoa em quem o leitor realmente pode confiar, tornando a arqueóloga o coração dessa instável equipe da TARDIS, uma posição que a própria se sente um pouco desconfortável.
Em sua segunda metade, A Ascensão De Lúcifer resolve a sua trama detetivesca, e investe em uma abordagem mais voltada para a ação, a partir do momento em que o centro de pesquisa é invadido por mercenários, e a ligação de Ace com a corporação IMC, vista pela primeira vez em The Space Pirates, é revelada. Ainda que essas passagens de ação sejam bem escritas, a atmosfera intimista das primeiras páginas se perde, especialmente porque o trabalho de personagens naturalmente se torna menos aprofundado. Por outro lado, é nesta segunda metade que a obra coloca a relação entre Ace e o Doutor, e a própria persona manipuladora do Time Lord de Sylvester McCoy em perspectiva. Obviamente Ace não traiu os seus amigos para se juntar a IMC, mas a jovem está jogando um jogo longo, que entre outras coisas, visa dar uma lição em seu professor, mostrando ironicamente o quanto ela se tornou parecida com ele. A Companion manipula os eventos para colocar o seu antigo mentor diante de uma situação em que ele não tem outra escolha a não ser encarar que em seus esforços para manter as suas mãos limpas enquanto induzia outros a sujar as mãos de sangue para impedir certas ameaças, ele talvez tenha se aproximado de seus impulsos mais sombrios ao invés de se afastar.
O clímax da narrativa consegue resolver a crise de confiança do time da TARDIS de forma bem interessante, ainda que um pouco surrealista, ao fazer os três viajantes do tempo basicamente se fundirem em um único ser e partilharem as suas memórias e emoções. Tal recurso poderia funcionar como um equivocado Deus ex machina para curar as mágoas entre o trio protagonista, mas felizmente Mortimore e Lane colocam essa experiência apenas como o primeiro passo no processo de recuperação de confiança do trio. Eles conseguem entender que se preocupam uns com os outros, e entendem por que tanto o Doutor quanto Ace tomam certas atitudes, mas perdoar completamente demanda tempo, e é muito legal que o livro reconheça isso.
Porém, não há como negar que A Ascensão de Lúcifer pode soar um romance pouco inchado em alguns momentos. Afinal, temos a trama detetivesca em torno da morte de Paula; a invasão dos mercenários da IMC ao centro de pesquisa, o mistério envolvendo os anjos alienígenas que parecem viver na atmosfera de Lúcifer, e o perigoso experimento conduzido por Alex Bannon com os cogumelos de Belial. Mas a dupla de escritores conseguem articular todas essas tramas de forma coerente, dando importância a todas elas, ainda que o leitor possa sentir que há muita coisa acontecendo ao mesmo tempo, especialmente na segunda metade do livro.
No frigir dos ovos, A Ascensão de Lúcifer é um romance que apresenta uma série de mistérios e conflitos instigantes, e um trabalho de construção de mundo muito bem feito, cheio de ótimos conceitos de ficção científica com paralelos muito bem pensados com elementos religiosos e de fé (e não só a fé religiosa). Mas o livro de Jim Mortimore e Andy Lane brilha mesmo quando se dedica às relações complexas e cheia de camadas que existem entre os seus personagens, trazendo pessoas de carne e osso que erram e acertam umas com as outras, e a questão se elas têm a confiança, e porque não dizer a fé, para tentar reparar os seus relacionamentos quando eles são danificados.
Doctor Who: A Ascensão de Lúcifer (Lucifer Rising)- Reino Unido. 20 de Maio de 1993
Autores: Andy Lane e Jim Mortimore
Publicação: Editora Virgin
Virgin New Adventures #14
346 Páginas