Especialmente no Século XX, estabeleceu-se que um fator de divisão entre o herói e o anti-herói, é o valor que o herói dá à vida alheia. Não é um conceito de uso geral, mas é um ao qual Doctor Who sempre foi simpático. A Nova Série se construiu dramaticamente em torno da culpa do Doutor como um herói forçado a um ato amoral. Mas fazer um episódio em torno da moralidade de matar para o Doutor é um desafio, pois, ao mesmo tempo em que há características comuns a todas as encarnações, existem elementos morais que são particulares a um Doutor. Situar uma trama dessas em um Western, um gênero onde a vida não vale muito, também é uma jogada esperta. Pois é em torno desse cenário e premissa que A Town Called Mercy se constrói. Na trama, o 11º Doutor, Amy, e Rory chegam à cidade de Mercy, na Nevada de 1870, e logo estranham o fato de os limites da cidade serem marcados por linhas de pedra. Logo, o trio percebe anacronismos como a presença de luz elétrica, e ao investigarem, descobrem que a demarcação da cidade e os anacronismos estão ligados a um letal pistoleiro ciborgue que vigia as saídas de Mercy, e a um misterioso médico protegido pelo agente federal do vilarejo.
Escrito por Toby Whithouse, A Town Called Mercy apresenta-se como uma brincadeira com western, reconhecendo que o Doutor e seus companions podem parecer fora de lugar em um faroeste, com Whithouse fazendo piada do quão não britânico é o Western. De fato, a história capitaliza em torno do conceito de que em um western, matar é a primeira solução para os problemas, quando os cidadãos, ao identificarem o Doutor como um alien, o jogam para fora da cidade para que ele possa ser morto pelo Pistoleiro. Mas por trás das brincadeiras, o texto usa o seu conflito moral sobre execução como punição como foco de uma discussão maior sobre os ecos da violência da guerra. A trama, afinal, é cheia de homens com traumas de guerra. E se a Time War do Doutor é mais abstrata, fica implícito que Isaac é um veterano da Guerra da Secessão, enquanto o conflito espacial onde o Pistoleiro e o médico Kahler-Jek estão envolvidos é uma metáfora clara da 2ª Guerra e dos horrores nazistas. É uma escolha inspirada do roteiro, já que ao associar o cientista a atos monstruosos que remetem a eventos do mundo real, o episódio convida o espectador a ficar ao lado do Doutor quando ele arrasta o homem em pânico até os limites da cidade, e o mantém do lado de fora sob a mira de um revólver.
Mas o episódio se esforça para dar camadas a Kahler-Jek. O cientista sente remorso por seus crimes, mesmo que os veja como atos justificados, e busca em Mercy uma forma de expiar os seus pecados. Muitas dessas características podem ser usadas para descrever o próprio Doutor, e é sintomático que o que causa a fúria do Time Lord é o fato de Jek ousar se comparar a ele. A ideia de confrontar o Doutor com o dilema da execução como solução é apropriada em uma temporada que culmina no quinquagenário limpando o sangue dos Time Lords das mãos do protagonista. Além disso, é interessante ver o Doutor frustrado com o seu próprio código moral, e perceber que ele está lidando mais com questões pessoais do que com o que está acontecendo no momento. É justo supor que o Doutor está projetando na situação a ideia de que ele poderia ter feito mais para impedir as mortes da Time War, ao apontar que a morte do cientista impediria qualquer outra morte causada pelo Pistoleiro. O argumento de Amy de que eles precisam ser melhores, surge como uma simplificação de algo mais profundo no episódio representado pelo sacrifício de Isaac, que morre para salvar Jek, defendendo que recorrer ao assassinato só perpetua a violência da guerra, onde homens bons acham motivos para não agirem como tal.
Apesar disso, a posição de tal conflito nessa temporada, somada às mudanças pelas quais a série passava naquele momento causam um certo ruído, algo que venho apontando em minhas resenhas da 7ª Temporada. É estranho que um episódio construído em torno da moralidade do Doutor recorrer ao assassinato suceda outro que viu o Time Lord abandonar alegremente o vilão de David Bradley em uma nave condenada sem grandes reflexões sobre o assunto. Da mesma forma, a afirmação de Amy de que o Doutor se perde quando viaja sem um companheiro parece muito de acordo com a Era Davies, mas não com o que o programa estava construindo naquele momento. Percebam que a série já estava retrabalhando a dinâmica do Doutor e dos Companions, reconhecendo que o Doutor passa algum tempo vivendo aventuras sozinho, enquanto os seus companheiros vivem um pouco a vida normal. Ainda que defenda que o Doutor precisa de companheiros para mantê-lo conectado às pequenas coisas, Moffat não parece acreditar que ele vá se tornar algum tipo de força destrutiva (ou acabar morto) se viajar sozinho da mesma forma que Russell T. Davies acreditava, tornando então parte do argumento desse episódio dissonante com o que o show estava construindo naquele momento.
Dito isso, quando o episódio restabelece o centro moral do 11º Doutor e de Kahler Jek, o roteiro de Whithouse perde bastante do seu fôlego. A ideia de que Jek escolha optar por cometer suicídio tanto como forma de expiação final como uma maneira de evitar que a violência que ele levou para Mercy o seguisse para outro lugar é instigante, especialmente por tal ato inspirar o Pistoleiro a também encerrar o seu ciclo de violência e buscar a sua própria redenção. Mas honestamente, em um episódio sobre moralidade e ciclos de violência, a execução da resolução da trama parece pouco convincente. Os elementos para sustentar os argumentos desta resolução estão presentes, mas são mal organizados, comprometendo assim a sua credibilidade.
Tal como no episódio anterior, o diretor Saul Metzstein lida bem com os valores de produção da série, sabendo aproveitar muito bem as locações no deserto espanhol, que já receberam muitos Western Spaghetti no passado. Em termos de atuação, esse é um grande episódio para Matt Smith, onde ele pode explorar uma série de sutilezas na forma como os traumas de guerra afetam o 11º Doutor. Toda a sequência do Doutor desnorteado ao perceber os paralelos entre ele e Kahler Jek, passando por seu surto de fúria e conversa com Amy e Isaac, é um dos grandes momentos de Smith no papel, com o ator transitando entre o drama e comédia com uma desenvoltura digna de aplausos.
A Town Called Mercy é um episódio divertido, que se vale bem das brincadeiras com o gênero do western para construir a sua narrativa. O roteiro de Toby Whithouse propõe discussões morais instigantes, conduzidas por personagens bem ricos, ainda que encontre dificuldades na hora de encaminhar as resoluções de seu conflito. Ainda que não esteja livre dos problemas de identidade que os episódios iniciais dessa 7ª temporada enfrentaram, A Town Called Mercy parece ao menos se ajustar melhor as ideias temáticas de Steven Moffat no ciclo do cinquentenário, apontando que aos poucos, o programa estava começando a entender as mudanças que estava propondo e o que queria fazer a seguir.
Doctor Who- 7X03: A Town Called Mercy (Reino Unido, 15 de Setembro de 2012)
Direção: Saul Metzstein
Roteiro: Toby Whithouse
Elenco: Matt Smith, Karen Gillan, Arthur Darvill, Andrew Brooke, Adrian Scarborough, Joanne McQuinn, William Byrd Wilkins, Garrick Hagon, Ben Browder, Sean Benedict, Roberto Cavazos, Lorelei King
Duração: 44 Minutos