Em seus mais de cinquenta anos, Doctor Who constantemente flertou com o terror, ficando conhecido por histórias onde os pequenos se escondiam atrás do sofá cada vez que algum monstro horripilante aparecia. Mais do que isso, a série criou verdadeiros pastiches de clássicos subgêneros do horror, usando signos estabelecidos de histórias envolvendo monstros muito tradicionais, como vampiros, múmias, fantasmas e zumbis, mas acrescentando elementos de ficção científica, e é claro, o Doutor. Embora lobisomens (ou monstros parecidos) tivessem aparecido na Série Clássica em arcos como Inferno e The Greatest Show In The Galaxy, tais arcos não tentavam brincar com os signos das histórias de lobisomem, ou emular a atmosfera gótica presente em muitas delas. Pois Tooth and Claw, episódio que é objeto desta resenha, bebe direto na fonte do horror gótico para construir a sua atmosfera, em uma aventura que ainda conta com a presença da Rainha Vitória e Monges lutadores de artes marciais.
Na trama, escrita por Russell T. Davies, enquanto tenta levar Rose para 1979 para assistir á um show de Ian Dury, o 10º Doutor materializa a TARDIS em 1879, onde a dupla logo é abordada por soldados que estão escoltando a Rainha Vitória. Devido a um mal-entendido, o Doutor e Rose se veem forçados a acompanhar a Rainha até o seu destino. Um bloqueio em uma linha de trem faz com que o grupo tenha que pedir abrigo na Propriedade Torchwood. Mas secretamente, uma seita que adora um lobisomem tomou a propriedade, e planeja fazer da Rainha portadora da maldição do monstro.
Não se pode negar que o roteiro de Russell T. Davies traz alguma estranheza ao publico logo em seu início ao mostrar o ataque dos monges artistas marciais á Propriedade Torchwood. Não que a cena seja mal realizada, mas acaba ficando um pouco fora de contexto em relação ao resto do episódio, tanto que a certa altura, parecendo não saber o que fazer com os monges, a narrativa simplesmente some com eles. Mas apesar desta escorregada, o roteiro de Davies consegue estabelecer um ambiente de ameaça, e constrói muito bem a maioria de seus personagens, mesmo os coadjuvantes, fazendo com que nos preocupemos com cada um deles, o que é louvável em uma história em que quase todo o elenco será brutalmente assassinado por um lobisomem até o desfecho.
Os episódios de “Celebridade Histórica” são uma forte característica da Era Davies. Estando presentes em todas as temporadas sob seu comando, estes episódios tentavam explorar os nuances, forças e fragilidades destas figuras históricas, indo além dos mitos que os circulam. De fato, o próprio comportamento de Rose em relação à Rainha Vitória, que tenta a todo custo transformar a Rainha em uma atração de parque ao fazê-la dizer a icônica frase “Não Estamos nos Divertindo” parece carregar certa crítica do roteirista em relação a essa forma de encarar figuras históricas.
Pauline Collins, que recusou a chance de ser companion nos anos 60, quando participou do arco The Faceless Ones, retorna a série dando à Rainha Vitória a dignidade e autoridade que a personagem exige, ao mesmo tempo em que trabalha de forma sutil o luto prolongado da monarca por seu falecido marido, além de sua forte religiosidade. Entretanto, existe um ponto central que diferencia Tooth and Claw dos outros “episódios de celebridade históricas” da Era Davies. A Rainha Vitória não é uma figura artística como Charles Dickens, William Shakespeare ou Agatha Christie, ela é uma figura política. O roteiro de Davies, embora não se aprofunde nesta faceta da Rainha, também não a ignora, como é demonstrado pelo desfecho, onde ela pune o Doutor e Rose por seu comportamento ao longo do episódio, em uma ação defensiva em relação à soberania de seu Reino.
Este episódio continua a explorar a persona do 10º Doutor, apresentando a natureza geek desta encarnação, que mostra um conhecimento considerável de cultura pop e revela-se incrivelmente empolgado pela natureza de suas viagens, seja por encontrar a Rainha Vitória ou por enfrentar um lobisomem. O Doutor de Tennant pela primeira vez também realiza a piada recorrente de censurar a sua companion quando ela tenta emular algum sotaque, o que se tornaria uma das marcas desta encarnação. Apesar destes aspectos mais divertidos do personagem, vemos pela primeira vez através do diálogo com a Rainha sobre perda de entes queridos, que toda esta aura alegre em torno do 10º Doutor não apagou os traumas deixados pela Guerra do Tempo, que continuam lá, embora escondidos por uma camada de orgulho e bom humor.
Já Rose é um caso a ser analisado. É inegável que existe uma evolução da personagem, que se mostra ainda mais forte e independente (em certo aspecto) do que em sua temporada de estreia. Mas embora a química de Billie Piper e David Tennant seja incrível, melhor ainda do que a que a atriz tinha com Christopher Eccleston que era excelente, a personagem parece ter perdido uma de suas principais qualidades da temporada anterior: o olhar de uma garota comum. É evidente que depois de tudo que a companion passou na 1ª Temporada, ela não poderia ter a mesma inocência e deslumbramento que tinha em suas viagens com o Nono Doutor.
Mas a moça perdeu a capacidade de evocar a sensibilidade e a humanidade do Doutor. Não que a dupla não se importe com as vítimas dilaceradas do lobisomem, mas eles estão simplesmente absortos demais na própria aventura para dar a devida atenção a essas mortes, tanto que mesmo após um personagem se sacrificar para conseguir algum tempo a Rose e ao Doutor para fugir com a Rainha, a jovem continua obcecada em fazer a monarca dizer a bendita frase. Se a atitude da Rainha ao fim do episódio pode ser vista como extremista e ingrata para com as pessoas que salvaram a sua vida, não chega a ser um gesto incompreensível, pois a queixa da monarca contra o time da TARDIS é bastante acertada. E o pior, nem Rose nem o Doutor estão interessados em rebater ou absorver a crítica de Vitória, ocupados demais com as suas próprias abstrações.
É curioso que Davies tente criar um processo de causa e consequência, pois a soberba do Doutor e de Rose diante da Rainha é o que cria o Instituto Torchwood, cujas ações no futuro iriam separá-los. Percebe-se que o showrunner tem consciência das falhas de sensibilidade cometidas por seus personagens neste episódio, o que traz uma proposta bastante interessante, mas que não é desenvolvida a contento. Por outro lado, temos um arco de temporada melhor delineado do que o da temporada passada, pois sabemos o que é Torchwood, e os protagonistas não. Mas o avanço não é tão grande, já que o instituto só voltaria a ter participação efetiva no arco final da temporada.
A direção ficou a cargo de Euros Lyn. O diretor se utiliza muito bem do belo design de produção usado para criar a Propriedade Torchwood, gerando sequências claustrofóbicas com o lobisomem perseguindo as suas vítimas. O diretor também faz um uso inventivo da batida câmera em primeira pessoa, representando a visão do lobisomem que, através de uma montagem eficiente, consegue transmitir a violência dos ataques sem mostrar efetivamente nenhuma violência. A montagem e os enquadramentos também são muito bem utilizados para criar o suspense e dilatação do tempo das cenas, com destaque para o belíssimo quadro que traz o Doutor separado do monstro apenas por uma parede. Quanto ao lobisomem, está muito longe de ser um primor dos efeitos CGI, mas já é um grande salto de qualidade em relação às criaturas digitais que apareciam na era do Nono Doutor. De fato, para uma série de TV de 2006, está muito bom.
Mesmo com alguns deslizes, Tooth and Claw é um episodio extremamente divertido, que cumpre muito bem a sua proposta de ser um suspense gótico de ação. Apesar das observações feitas anteriormente, David Tennant e Billie Piper mostram uma química de cena espetacular, Pauline Collins entrega uma Rainha Vitória humanizada com quem conseguimos nos importar, e os aspectos técnicos são dignos de elogios. E claro, é uma boa história de lobisomem, nos moldes de Doctor Who.
Doctor Who- 2×02. Tooth and Claw (Reino Unido, 22 de Abril de 2006).
Direção: Euros Lyn
Roteiro: Russell T. Davies
Elenco: David Tennant, Billie Piper, Pauline Collins, Ian Hanmore, Michelle Duncan, Derek Riddell, Jamie Sives, Ron Donachie, Tom Smith.
Duração: 45 Min.