Home TVEpisódio Crítica | Doctor Who – 1X04: 73 Jardas (73 Yards)

Crítica | Doctor Who – 1X04: 73 Jardas (73 Yards)

Nasce uma lenda whovian.

por Luiz Santiago
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Doctor Who não é exatamente uma série que explora ao mesmo tempo experimentos na forma e no conteúdo de seus episódios. Por isso mesmo, quando um capítulo que combina essas duas características ganha vida, é impossível para o público não comentar largamente sobre ele (lembre-se que da última vez que isso aconteceu, em Fugitive of the Judoon, a whovianzada ficou em polvorosa). No caso do presente 73 Jardas (em medida de gente normal: 66,7 metros), temos o surgimento de um novo enredo-lenda na série, algo que segue no caminho de exigência dramática e estrutura narrativa de Midnight, outro impactante episódio de Russell T. Davies, que eu demorei muito tempo para apreciar por completo e reconhecer. Neste exercício que mistura terror, fantasia, magia (ingredientes muito caros a esta temporada inaugural da 2ª Nova Série) com ficção científica, o autor cria algo que certamente será lembrado como um dos grandes episódios de DW.

A trama nos prende do início ao fim da projeção, entregando uma atmosfera mista de Além da Imaginação com Black Mirror. Notem, porém, que o mistério, em suas linhas essenciais, não é nada “impossível de entender“, como andam dizendo por aí. Tudo o que precisamos para acompanhar a jornada, temos na tela. Vamos à sequência. O Doutor pisa em um Círculo de Fada e destrói uma parte dele. Ruby lê algumas inscrições deixadas ali. No momento em que as duas coisas se combinam, algo sobrenatural é liberado e o balanço do Universo se altera, suprimindo a força que poderia combater o invasor (ou seja, o Doutor desaparece) e algum tipo de destruidor (Mad Jack) é liberado. Por algum motivo que tem a ver com a verdadeira identidade/origem/essência de Ruby — um dos mistérios da temporada –, ela se torna a nova força de combate, tornando-se uma figura medonha, capaz de empurrar a si mesma para impedir que o Doutor pisasse no círculo de fadas.

Lembremos que o medo, a superstição e a ideia de “deixar coisas inexplicáveis escaparem de suas prisões” já vinha sendo cozinhada desde o sal no fim do Universo que o 14º Doutor jogou em A Imensidão Azul. Aqui, todas essas migalhas se reuniram para formar uma base sólida. Quando o Doutor destrói o Círculo de Fadas, 4 coisas inexplicáveis acontecem ao mesmo tempo: uma nova linha do tempo é criada; uma força de combate é suprimida (o Doutor); uma força de combate é criada (a mulher-medonha ou Ruby); e uma força destruidora é liberada de sua prisão (Mad Jack). Ninguém precisa de mais  explicações, detalhes ou correlações além dessas para apreciar verdadeiramente o episódio. Isso basta. O resto é um tipo de vício de consumo artístico que domina plateias e críticos há bastante tempo, como podemos comprovar no excelente Contra a Interpretação (1964), de Susan Sontag.

É muito bom ver um episódio sem participação extensa do Doutor e que funciona de maneira esplêndida (saudades de Blink, né?), pela qualidade das atuações, do texto e da direção. Millie Gibson entrega aqui tudo o que não tinha entregue até o momento, e pela primeira vez eu realmente vejo nela algo que vai além da figura “bobinha” que transpareceu até aqui — o que talvez seja um disfarce para sua verdadeira persona, não é verdade? As brincadeiras estéticas, como uso bem aplicado de planos holandeses (alinhamento torto), trilha sonora macabra e excelente ao longo de todo o episódio (Murray Gold sendo a alma musical da série, como sempre), uma fotografia bem trabalhada em diversos filtros, em vez de seguir o básico só com paletas frias; e um texto que mostra um paradoxo a partir da temática da superstição e do medo, duas características centrais da temporada, são ótimos pontos de partida para desenvolver uma companion. São tantas boas variantes, que é inacreditável que tenhamos tido um episódio dessa qualidade e com essa proposta, nessa fase da temporada.

A variação de figurino de Ruby e o belíssimo figurino do Doutor também são destaques. A formação dos estágios emocionais e da dúvida sobre o que a mulher dizia para as pessoas podem ser vistas na mudança das roupas, na passagem das idades de Ruby no calendário, das referências natalinas e na maneira como ela foi aceitando o fardo de ter uma figura macabra como uma maldição. Aliás, o poder dessa figura, capaz de impedir a completude do poder de Mad Jack, foi uma jogada excelente de Ruby — e ainda bem que o texto faz a referência do por quê ela demorou tanto para tomar essa atitude. Em 73 Jardas, RTD cria um mito sombrio, envolvente e muito intrigante. Infelizmente, é um daqueles episódios que muita gente vai passar a vida adicionando pelo em ovo e colocando no enredo coisas que ele nunca se propôs a dar, em vez de aproveitar o que há de melhor aqui: o medonho mistério envolto numa quantidade muito bem medida de respostas ou meias-respostas. Uma obra-prima do show. Algo que, confesso, não achei que veria tão cedo na WhoDisney.

Doctor Who – 1X04: 73 Jardas (73 Yards) – Reino Unido, 24 de Maio de 2024
Direção: Dylan Holmes Williams
Roteiro: Russell T. Davies
Elenco: Ncuti Gatwa, Millie Gibson, Sophie Ablett, Aneurin Barnard, Elan Davies, Maxine Evans, Hilary Hobson, Gwïon Morris Jones, Siân Phillips, Glyn Pritchard, Sion Pritchard, Jemma Redgrave, Susan Twist
Duração: 50 min.

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