Muitos defendem que a obra de H.P. Lovecraft, um dos grandes pilares da literatura de horror, é quase inadaptável para o audiovisual. Não chega a ser um preceito absurdo tendo em vista que a prosa de Lovecraft foge constantemente das descrições visuais, buscando retratar horrores dos quais os sentidos não dão conta. Por outro lado, o número de filmes clássicos claramente influenciados pelo trabalho do escritor, como A Bolha Assassina (1958); Alien (1979); O Príncipe Das Sombras (1987), só para citar alguns, mostra que as histórias de Lovecraft não estão assim tão distantes da película quanto alguns apontam.
Entretanto, poucas adaptações diretas da obra de Lovecraft deram bons filmes. Mas essas boas adaptações existem, com a maioria tendo sido comandadas pelo saudoso Stuart Gordon. O diretor havia lançado no ano anterior o ótimo Re-Animator (1985), adaptação da noveleta homônima de Lovecraft, e inspirado pelo que Roger Corman havia feito com a obra de Edgar Allan Poe nos anos 60, decidiu fazer o mesmo por Lovecraft, escolhendo para este segundo projeto levar o conto Do Além (1934) para as telas.
Na trama, o Dr. Crawford Tillinghast (Jeffrey Combs) é um físico que trabalhava como assistente do Dr. Edward Pretorious (Ted Sorel), que fazia experiências com estímulo da glândula pineal que poderiam aumentar a percepção humana. Após um bizarro acidente, o corpo de Pretorious é encontrado decapitado, e Crawford é acusado de seu assassinato, embora alegue que o chefe tenha sido morto por criaturas de outra dimensão, que se tornam visíveis quando a máquina de estímulo Resonator é ativada. Quando a ambiciosa psiquiatra Katherine McMichaels (Barbara Crampton) toma Crawford sob os seus cuidados, ela decide que a melhor chance de cura, é fazer o cientista confrontar o seu trauma, reproduzindo o experimento de Pretorious. Mas essa decisão irá jogar Crawford, Katherine e todos ao seu redor em um mundo do além, repleto monstros e loucura.
Escrito por Dennis Paolli, parceiro habitual de Gordon, Do Além utiliza o conto de Lovecraft apenas como ponto de partida, movendo a ação para o tempo contemporâneo (no caso os anos 80) para criar uma história de corrupção e body-horror. Diferente de sua incursão anterior no mundo de Lovecraft, que flertava mais fortemente com o terrir, esta produção de 1986 tenta se levar mais a sério, mesmo que ainda se permita alguns raros momentos de humor. O texto aborda um tópico comum da ficção científica de horror, tal como as consequências destrutivas da ambição científica desmedida, estabelecendo paralelos interessantes entre Pretorious e Katherine.
O filme aborda temas típicos da mitologia lovecraftiana, como a fragilidade da sanidade humana. Nesse sentido, o arco dramático construído para o protagonista vivido por Jeffrey Combs é muito ilustrativa ao mostrar Crawford (aquele que passou mais tempo sob a influência da máquina Resonator) perdendo o seu senso de realidade à medida em que isso se reflete na transformação de seu próprio corpo. Ainda que o protagonista seja mais afetado por essa loucura que surge do horror sobrenatural, os outros personagens também estão sujeitos a ela, o que leva a narrativa para uma conclusão cíclica perturbadora, mas bastante interessante. É válido ainda observar como a história acrescenta fortes elementos psicossexuais em sua trama de horror cósmico, ao conectar as fantasias eróticas dos personagens com a influência que sofrem de outras dimensões.
A direção de Stuart Gordon valoriza a aura de ficção científica B proposta, com uma decupagem que destaca o trabalho de maquiagem e os efeitos práticos realizados pela equipe de Mark Shostrom (maquiador que já participou de franquias como A Hora do Pesadelo e Evil Dead). As formas assumidas pelo monstro Pretorious em especial são particularmente nojentas e macabras, com Gordon não economizando em planos fechados para mostrar os gosmentos detalhes cheios de fluídos humanos da criatura. Em um filme com esse tipo de monstro, as cenas de gore e violência são o que vão definir se a obra vai cair no ridículo ou não, mas felizmente Gordon sabe o que faz, criando passagens maravilhosamente bizarras, mas que não nos tiram da imersão. Os efeitos especiais de chroma key por sua vez, já não envelheceram tão bem, mas felizmente eles são pouco presentes, com o longa apostando a maioria de suas fichas nos efeitos práticos.
O elenco também merece créditos por conseguir dar credibilidade para a história em meio a toda loucura e aura trash do filme. Jeffrey Combs vive o típico personagem lovecraftiano, concedendo uma fragilidade muito bem vinda para o seu protagonista, que se v cada vez mais incapaz de lidar com a loucura e os horrores que o cercam, passando a sucumbir fisicamente e mentalmente a eles. Barbara Crampton, por sua vez, parte do arquétipo da cientista ambiciosa para construir a sua Katherine, mas desconstrói tal arquétipo de forma eficiente, á medida em que a personagem vai sendo corrompida por seus próprios desejos e ambições amplificados pelo Resonator.
Do Além pode se orgulhar de ser uma das obras que confirmam que é sim possível fazer boas adaptações cinematográficas da obra do mestre do horror cósmico, e ouso dizer, que guardadas as devidas proporções, é capaz até de superá-la, com o filme sendo bem mais eficiente que o conto. Ainda que seja uma produção típica dos anos 80, e naturalmente carregue não só as virtudes, mas os vícios da época, o filme de Gordon se mantém uma experiência cativante, ao colocar os horrores extradimensionais indizíveis de Lovecraft como reflexo das repressões e demônios internos do próprio ser humano.
Do Além (From Beyond), Estados Unidos, 1986
Direção: Stuart Gordon
Roteiro: Dennis Paolli
Elenco: Jeffrey Combs, Barbara Crampton, Ken Foree, Ted Sorel, Carolyn Purdy-Gordon, Bunny Summers, Bruce McGuire
Duração: 86 Minutos.