Em uma bela e desolada paisagem digna de faroestes estrelando John Wayne, vemos a triste realidade dos EUA no final do século XIX: uma fila de escravos negros acorrentados um ao outro é levada lentamente por dois cowboys a cavalo. É algo incomum em filmes dessa natureza que, normalmente, são higienizados e tratados unicamente sob o ponto de vista do homem branco.
Mas é um começo também incomum para Quentin Tarantino. Sem diálogos. Sem ação. Sem movimentos espertos de câmera. Ele nos permite tempo para que a gravidade do que vemos na tela seja perfeitamente compreendido. A mensagem do cineasta é passada ali, naquele exato momento. O resto é conseqüência.
E também é um conto de fadas. Um violento, heroico e inesquecível conto de fadas.
O primeiro sinal disso é quando os cavaleiros (os irmãos Speck), à noite e no meio de uma floresta vêem alguém se aproximar em uma pequena carruagem. A primeira coisa que notamos é um gigantesco e surreal dente no teto e, em seguida, nas rédeas, um simpático dentista alemão que se apresenta como o Dr. King Schulz (Christoph Waltz em sua segunda parceria seguida com Tarantino, depois de ser revelado ao mundo em Bastardos Inglórios). Ele desce, pergunta se algum dos escravos vem da fazenda de Corrigan e, quando ouve uma resposta positiva, parte para examinar cada um dos sofridos homens acorrentados, sob o olhar desconfiado dos cavaleiros. Quando ele acha quem ele está procurando – Django (Jamie Foxx) – ele começa a negociar sua compra e, quando um dos irmãos Speck decide enfrentá-lo, em um passe de mágica ele estoura a cabeça do valentão e derruba o cavalo sobre o outro, que tem a perna quebrada.
Descobrimos, logo em seguida, que Schulz é um caçador de recompensas que precisa de Django para identificar os irmãos Brittle, feitores da fazenda de onde vinha e alvos atuais do caçador. Mas Django revela-se como um bom parceiro e os dois se unem em torno de um mesmo propósito. É o começo do que poderia ser chamado de uma bela amizade.
Como é que o Dr. King Schulz encontra Django no meio daquela floresta negra? Como é que ele sabe onde estão todos os bandidos que os dois têm que matar? O rosto simpático de Schulz naquela sua carrocinha nos remete muito mais ao mágico que Dorothy encontra no começo de O Mágico de Oz do que um personagem efetivamente crível.
E Tarantino nos dá mais uma pista sobre o lado mais mágico de sua história, quando faz um interessante paralelo entre a história de Django e sua amada Brunhilde (Kerry Washington) e, claro, a lenda de Brunhilde e Siegfried, profundamente enraizada na cultura alemã. O paralelo é óbvio e nos é revelado em detalhes pelo Dr. Schulz, quando ele conta o mito para Django. Qualquer criança ligaria os pontos.
Mas o personagem mágico de Tarantino talvez tenha ainda outra camada. Em seu filme anterior, Bastardos Inglórios, o cineasta colocou Christoph Waltz no papel de um coronel da SS apelidado de Caçador de Judeus, além de mostrar o povo alemão em geral sob uma péssima luz. Em Django Livre vemos o inverso. Waltz é, agora, o alemão salvador, mas que continua sendo um caçador. Alguém completamente despido de preconceitos que faz de tudo para salvar vidas inocentes, mas é completamente inabalável em seus propósitos. Ele por várias vezes chama o comportamento dos americanos em cultivar a escravatura como um dos pilares da sociedade como bárbaro e inaceitável. Ele é justamente o anjo para o diabo que é Hans Landa. E Django, seu pupilo, é como se fosse um instrumento mortal da ira divina caindo sobre os pecadores.
E com isso voltamos para o mito de Brunhilde e Siegfried. Tarantino já havia mostrado, de sua muito peculiar maneira, o que acha dos nazistas. Em Django Livre, ele continua suas demonstrações contra o preconceito de qualquer natureza ao transformar o personagem-título em Siegfried. Para quem não se lembra, Hitler usou a imagem de Siegfried como o ideal ariano e partiu daí para construir sua própria e repugnante visão de mundo. Ao fazer com que um alemão transforme Django em Siegfried, Tarantino acaba por soterrar a distorção do mito pelo ideal nazista, transformando o filme em talvez o mais simbólico e metafórico de todos de sua carreira. Ele consegue não só reiterar seu trabalho anterior como transportar a ideia para discutir a questão da escravidão e, em uma tacada só, ainda “limpar a barra” do povo germânico.
Mas essa camada fortemente mitológica que Tarantino cria exatamente para demolir mitos não é a única maneira de se ver Django Livre. Há a história de amor incondicional entre Django e Hilde, a história de vingança de Django contra tudo e todos que representam aqueles que já lhe fizeram mal e as várias e várias referências que o diretor salpica por toda a fita.
Sobre as referências, falarei apenas de algumas poucas. A mais óbvia delas é o próprio título e nome do personagem principal, retirado diretamente do clássico faroeste de 1966 batizado unicamente de Django, nome do personagem vivido por Franco Nero. E Nero, claro, faz uma icônica ponta em Django Livre, como o proprietário de escravos que perde uma aposta para Calvin Candie (Leonardo DiCaprio) e divide maravilhosamente a cena com Django no bar no Club Cleopatra.
A outra referência que não poderia deixar de citar é ao clássico curta animado da série Merry Melodies, chamado Dog Gone South. Nele, um cachorro ianque tenta se refugiar na mansão de um sulista e, como de praxe nesses inesquecíveis desenhos, tudo dá errado. O personagem Big Daddy (Don Johnson, quase irreconhecível) em Django Livre é a personificação live action do dono da mansão no cartoon e toda a ação nessa sequência do filme tem o mesmo espírito. A comparação é imperdível e vale caçar o desenho para assistir. Falar de mais referências seria tornar essa crítica enfadonha, se é que ela já não o está. Tenho mais interesse, porém, em falar das atuações.
Christoph Waltz, como o mágico/anjo/deus Dr. King Schulz é um dos grandes atores descobertos por Tarantino. Sua atuação como Hans Landa foi absolutamente impecável e ele repete sua incrível capacidade de hipnotizar o espectador novamente em Django Livre. A sutileza de sua fala, seus trejeitos, tudo conspira para fazer com que suas atuações sejam marcantes, inesquecíveis mesmo. A cena entre Schulz e Candie que antecede o gigantesco tiroteio mais para o final da fita é um exemplo disso. Sem revelar o que acontece, basta dizer que nós vemos no olhar de Waltz o que Schulz vai fazer. Se talvez pudesse ser uma possibilidade segundos antes, nós, que acompanhamos o personagem por quase duas horas, temos certeza na hora que a câmera enquadra o rosto de Schulz. Não tem erro. O mesmo vale para a terrível sequência da captura de D’Artagnan (Ato Essandoh), um escravo foragido. Schulz tenta evitar o pior e seu rosto consternado quando não consegue é de partir o coração.
O personagem de Leonardo DiCaprio, Calvin Candie, dono de uma enorme fazenda e senhor de escravos que adora fazer rinha de galo com suas “propriedades”, é a personificação do mal. Desde seu cabelo escovado para trás, sua postura efeminada e seus dentes pretos de fumo, tudo indica que ele é a vilania viva. É o demônio – ou dragão – que tem que ser enfrentado pelo anjo Schultz e seu pupilo Siegfried/Django em seu resgate de Brunhilde. A atuação caricata de DiCaprio não nos faz nunca duvidar que, apesar dos exageros, ele é alguém que possa realmente existir. E, com isso, ele consegue evocar toda uma gama de sentimentos ruins, exatamente o que era pretendido pelo diretor, que pode ser considerado um gênio na escalação de seu elenco.
Samuel L. Jackson, no papel do escravo “domado” Stephen, que é o verdadeiro senhor da fazenda de Candie, mastiga o cenário. Aprendemos bem antes no filme que há dois tipos de negros odiados pelos próprios negros: os negros capachos dos brancos e os negros traficantes de escravos. Django tem que fazer o papel do segundo e Stephen é o primeiro. Essa figura desprezível vê tudo e entende tudo. Sabe manipular seu mestre contra seus irmãos e, se Candie é o demônio, Stephen é o pai do demônio. Nunca vi Jackson fazer um papel tão intenso e odioso em sua longa filmografia e fazer o que ele fez debaixo da perfeita, mas pesada maquiagem que o envelhece significativamente é um grande triunfo para o ator cuja atuação é costumeiramente esquecida neste filme e que deveria no mínimo ter sido indicado a um Oscar de ator coadjuvante.
No meio disso tudo, temos Jamie Foxx. Apesar de ter levado para casa o Oscar de melhor ator por sua fenomenal atuação em Ray, o fato é que ele nunca foi consistentemente um grande intérprete. E, em Django Livre, ele está sempre contracenando ou com Waltz apenas ou com Waltz e DiCaprio e, logo antes do clímax, com Waltz, DiCaprio e Jackson. Nessas circunstâncias, pode-se dizer, ao menos, que ele não faz feio e o desenho caricato de seu figurino – de óculos escuros e figurino estiloso de pistoleiro invencível – empresta uma aura ao personagem que não exige dele um trabalho muito maior do que posar para a câmera com cara de inteligente.
Acontece que Django Livre não é um filme exatamente sem defeitos, merecedor irrestrito da nota máxima. O maior de seus problemas é de ritmo, ainda que esteja muito, mas muito longe do que vemos em À Prova de Morte. E, creio, há duas causas para isso. A primeira delas é a trágica ausência de Sally Menke, responsável pela montagem de todos os filmes anteriores de Tarantino. Ela faleceu em 2010 e acabou substituída pelo assistente de montagem Fred Raskin, que trabalhou nos dois Kill Bill. Ele faz um trabalho hercúleo, mas não consegue chegar ao nível de Menke e acaba criando cenas com cortes em momentos errados ou abruptos demais, como na estranha cena da KKK indo atrás de Schultz e Django. Os cortes funcionam, mas apenas burocraticamente, sem a dinâmica impressa por Menke tão maravilhosamente bem nos filmes anteriores.
Mas seria injusto culpar apenas Raskin. Tarantino escreveu um roteiro bastante linear e simples (que ganhou uma ótima versão em quadrinhos), dividido em capítulos estanques, ainda que não sejam explícitos. Não vemos aqui a narrativa não-linear que marcou seus filmes anteriores nem a verborragia de vários de seus inesquecíveis e longos diálogos. E isso não seria problemático não fosse o falso clímax da fita, que poderia muito bem ter sido o verdadeiro e único. Quando o tiroteio na mansão acaba, somos levados para uma longa sequência preparatória do apoteótico “efetivo” final, mas que apenas contribui para uma sensação de lentidão e repetição. Com menos esses 15 ou 20 minutos em Django Livre, a presente crítica, que também talvez sofra do mesmo problema de tamanho, talvez não contivesse os últimos dois últimos parágrafos de ressalva.
Fico feliz em concluir dizendo que Django Livre, apesar dos defeitos, representa mais um perfeito exemplo da capacidade de Tarantino de surpreender seus espectadores, evitando repetições de temas e mostrando um frescor incessante. A escravatura nunca teve um inimigo tão potente quanto o cineasta e um herói tão inesquecível quanto Django.
- Crítica originalmente publicada em 05 de janeiro de 2016. Alterada para republicação no dia de hoje, 11/08/19.
Django Livre (Django Unchained, EUA – 2012)
Direção: Quentin Tarantino
Roteiro: Quentin Tarantino
Elenco: Jamie Foxx, Christoph Waltz, Leonardo DiCaprio, Samuel L. Jackson, Kerry Washington, Walton Goggins, Dennis Christopher, James Remar, David Steen, Dana Gourrier, Nichole Galicia, Laura Cayouette, Ato Essandoh, Sammi Rotibi, Don Johnson, Franco Nero
Duração: 165 min.