Pouca gente sabe que o cinema alemão da República de Weimar produziu muitos filmes além dos expressionistas. Comédias de imitação hollywoodiana, caricaturas de personalidades e artistas da época ou adaptações literárias do século XIX também estavam na pauta das produções locais, isso pelo menos até a oficialização do Partido Nazista no poder, em 1933.
O filme Diferente dos Outros (1919), do diretor Richard Oswald, traz à discussão algo da produção não expressionista na Alemanha, ao mesmo tempo que se coloca como pioneiro na manifestação da homossexualidade no cinema, sendo considerado o primeiro longa-metragem gay da história*. O filme chegou até nós numa cópia bem reduzida de sua versão original, tendo sido vítima de uma série de cortes e destruição de suas melhores cópias, proibidas em cinemas de algumas cidades e países da Europa e Ásia e incendiadas pelos nazistas no expurgo inicial que o sistema realizou entre 10 de maio e 21 de junho de 1933.
A história do filme é bastante ousada para a época, mas se a enquadrarmos na realidade berlinense pós-1918, é perfeitamente compreensível que tenha surgido nesse tempo e espaço, a espeito da imposição jurídica em vigor que o roteiro do filme critica fortemente. A Alemanha da República de Weimar era um caldeirão de tendências, opiniões e comportamentos de todos os tipos e em todos os setores. Haviam conflitos políticos de esquerda e direita; a inflação se comportava como um Cavaleiro do Apocalipse (1kg de pão chegou a custar 80 bilhões de marcos**) e as artes floresciam vigorosamente no campo da vanguarda, seja na literatura, no teatro, na arquitetura ou no cinema, cujo principal produto foi o Expressionismo Alemão.
É nesse ambiente berlinense de “inferninhos”, prostituição, artistas das mais diversas tendências e uma notável “cena gay” que a liberdade/ousadia de falar sobre a homossexualidade permitiu que Richard Oswald dirigisse Diferente dos Outros. Como explicamos anteriormente, trata-se de um filme didático, uma forma de tornar conhecido do grande público o comportamento homossexual sob uma ótica médica e também de mostrar como a discriminação social e jurídica podiam acabar com a vida das pessoas que se sentissem acuadas só por serem, como o título do filme diz, diferente dos outros, uma realidade que infelizmente se perpetuou no tempo, gerando histórias trágicas como a mostrada no filme Orações Para Bobby (2009), apenas para citar um exemplo cinematográfico do século XXI.
A base da narrativa em Diferente dos Outros é a crítica ao Parágrafo 175 do Código Penal alemão, promulgado em maio de 1871 (abolido apenas em março de 1994) e que tornava ilegal a “prática homossexual” no país. No filme, temos o verdadeiro Doutor Magnus Hirschfeld (1868-1935) interpretando ele mesmo, um sexólogo, que explica para o personagem de Conrad Veidt os detalhes e origem de sua pulsão sexual. O Dr. Hirschfeld acreditava que a homossexualidade era, na verdade, um “terceiro sexo”, forma de enxergar a questão que lhe rendeu muitas críticas dos próprios homossexuais à época, que não se sentiam muito à vontade com essa definição. A teoria também bate de frente com a versão de Freud sobre o mesmo tema (para saber mais, leia os muitíssimo esclarecedores Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, publicados por Freud em 1905 e lançados em inúmeras coletâneas aqui no Brasil).
Vale ainda dizer que o Dr. Hirschfeld era um ativo defensor da causa homossexual, tendo fundado em 1897 a primeira organização de defesa LGBT da História, o chamado Comité Científico-Humanitário, que chegou a realizar encontros contra o Parágrafo 175 e fez petições para libertação dos acusados e presos por sua “condição de homossexual”, petições que chegaram a ter assinaturas de personalidades da época como Albert Einstein, Hermann Hesse, Thomas Mann, Rainer Maria Rilke e Tolstói.
Diferente dos Outros é um filme marcante. O roteiro ainda guarda ideias que incomodam um espectador do século 21, mas salvo os avanços ideológicos e científicos obtidos com o tempo, podemos ver na obra uma eficiente e bem intencionada forma de lutar contra o preconceito. Também é interessante observar que a fita carrega alguns estereótipos do que era a personagem homossexual no cinema daquele início de século e que seria por muito tempo, basta atentarmos para as grandes olheiras pintadas no personagem de Conrad Veidt para perceber isso.
No que concerne à qualidade do filme, é difícil avaliar com segurança uma obra que sabemos ter sido picotada e reeditada através dos anos, mas o material que restou é de boa qualidade, padecendo apenas dos vícios e incômodos de edição do Primeiro Cinema, mas isso não interfere de maneira absurda na qualidade geral da obra. Quanto às atuações, destaca-se o ótimo Conrad Veidt no papel do violonista homossexual e seu drama particular entre o mostrar-se para a sociedade e ser o que de fato era.
Creio que por toda a importante história que o cerca, Diferente dos Outros deveria ser um filme mais conhecido e melhor divulgado, especialmente em tempos de popularização massiva do discurso em prol dos direitos humanos e da liberdade sexual, seja ela qual for, principalmente porque mostra o quão atrasada se encontra a cabeça dos que ainda não se deram conta do óbvio: a espécie humana é feita de diversidade, de diferenças. Nós não somos iguais. E nem sempre gostamos ou somos conquistados e impulsionados pelas mesmas coisas. Ainda bem.
* Algumas pessoas consideram o curta-metragem The Dickson Experimental Sound Film (1894/1895) como o primeiro filme com temática homossexual a ser realizado.
** Para quem se interessa por esses dados e uma ampla análise histórica desse período, indico fortemente a leitura de Berlim, 1919-1933 – Gigantismo, Crise Social e Vanguarda: a Encarnação Extrema da Modernidade, organizado por Lionel Richard e publicado no Brasil pela primeira vez em 1993, pela Editora Zahar.
Diferente dos Outros (Anders als die Andern) – Alemanha, 1919
Direção: Richard Oswald
Roteiro: Magnus Hirschfeld, Richard Oswald
Elenco: Conrad Veidt, Leo Connard, Ilse von Tasso-Lind, Alexandra Willegh, Ernst Pittschau, Fritz Schulz, Wilhelm Diegelmann, Clementine Plessner, Anita Berber, Reinhold Schünzel, Helga Molander, Magnus Hirschfeld, Karl Giese
Duração: 50 min.