Em um de seus polêmicos artigos, a crítica de cinema Pauline Kael discursou sobre a desventura de um cinéfilo frente a uma “obra menor” de qualquer “grande diretor”. Dizia ela que é inevitável o espectador comparar os filmes anteriores do cineasta, fazer uma análise retrospectiva, elencar um ranking qualitativo, justificar o fracasso de uma “obra X” pelo sucesso das “obras Y”. Diante dessa visão, acrescenta-se que o ato inevitável da comparação por vezes cega o especador, interferindo como uma má influência em sua análise. É claro que relacionar um filme com as obras anteriores do mesmo diretor é benéfico para qualquer crítica, mas não se pode desdenhar ou menosprezar um filme apenas porque ele “não é igual aos outros”. Para quem conhece a obra de Wong Kar Wai e tenha assistido ao seu segundo filme, Dias Selvagens (1990) depois da maioria das obras posteriores a esta, certamente se deparou com a situação descrita acima e pode ter relutado um pouco antes de dar o devido valor a essa película-semente na carreira do realizador chinês.
Como é de comum nos filmes do cineasta, a história se passa em Hong Kong, na década de 1960. O filme nos traz algumas tramas individuais aparentemente desconexas que se cruzarão com o tempo, todas direcionadas para o mesmo objetivo: a busca pelo amor. No paraíso alienado e isolado de seus personagens, o diretor acompanha o surgimento e a desilusão das relações amorosas, fraternas ou familiares. Como principal integrante da “Nouvelle Vague de Hong Kong” (segundo definição do pesquisador Ackbar Abbas, 1997), Kar Wai faz valer o teor comercial dessa “nova onda”, produzindo filmes profundos e experimentais, possíveis de serem amplamente distribuídos. Em Dias Selvagens, a inspiração vinda da escola francesa aliou-se a um estilo próprio de “cinema transnacional” de Hong Kong e resultou em um produto que já anunciava o surgimento de um dos mais originais realizadores da última década do século XX. O uso pontual da música, o virtuosismo fotográfico, as muitas elipses narrativas mais uma rigorosa edição em continuidade dão ao filme todos os elementos que seriam aprimorados pelo diretor a partir de então.
Se nas histórias de amor posteriores Kar Wai daria maior importância ao drama psicológico dos personagens inserindo-o como elemento essencial de toda a película, aqui, tal jogo é feito de maneira uniforme, contendo igualmente os motivos individuais e as influências externas. O desamor e o desapego aparecem em todos os lugares, embora os indivíduos lutem para alcançar uma atenção qualquer. Durante todo o tempo caminhamos com esses indivíduos “perdidos e sem amor” à procura de amigos, parceiros ou amantes, sem nunca chegarmos ao nosso objetivo. Quanto mais frustrações essa busca apresenta, mais desvirtuados e violentos se tornam os personagens. Um certo niilismo se apodera de todos e cada um resolve lidar com a falta de amor a seu modo, uns com magoada resignação; outros, com uma vida criminosa e violenta. Dias Selvagens representa um grito de socorro para si e para os outros. Enquanto alguns estão vazios de sentimento, outros não conseguem lidar com o que sentem ou exteriorizam isso de forma psicologicamente doentia.
Elementos típicos do cinema de Kar Wai como desencontros, cortinas esvoaçantes, música nostálgica, figurinos exuberantes, cigarros, sexo e fumaça se espalham durante os 94 minutos de projeção. A tonalidade latina que tanto agrada aos fãs do diretor ganha na fotografia de Christopher Doyle tons que privilegiam a escala verde-azul, cercando o espaço cênico interno e externo de uma atmosfera claustrofóbica e quase onírica. Ao som de Siempre en mi Corazón (Ernesto Lecuona) e de outras rumbas e boleros, o filme começa e termina em uma procura pelo outro e por um entendimento de si mesmo. Não há muitas novidades no enredo, mas a forma agradável da direção torna os planos longos e o precioso uso do zoom e câmera lenta um ótimo modelo de filmar corpos femininos dançando, rostos masculinos tristes e objetos isolados do cenário num filme sério e autoral sobre o amor.
Com Dias Selvagens, Amor à Flor da Pele (2000) e 2046 (2004), o diretor fecharia uma trilogia não planejada sobre as relações amorosas. O primeiro passo dessa jornada de mais de uma década, que tem ainda o irônico Felizes Juntos (1997) no meio, olha com certa indulgência para o amor. Ao fim, a preocupação extrema na busca por sentir-se amado acaba em banalização do sentimento, tornando-o apenas um dos muitos “obstáculos” a que se deve enfrentar na vida. Como fuga, as realizações pessoais e o dinheiro passam a ter maior importância para as pessoas. Dilatado o amor, sobra quase nada de um coração e essa nova realidade será vislumbrada nos filmes posteriores da “trilogia”.
Não há um único culpado para o sofrimento em Dias Selvagens. Uma cadeia de necessidades e egoísmo movem as pessoas a agirem em prol de si mesmas, embora saibam que suas ações podem afetar aqueles a quem amam. Kar Wai vasculha algumas realidades que podem mover as pessoas a abandonarem ou tentarem esquecer as outras. O sucesso ou a tragédia de tais ações aparecem em imagens líricas e profundamente impactantes, embora a intenção seja a de um afastamento emotivo e um olhar mais racional para o problema. Concluímos que os ‘dias selvagens’ desses personagens são os ‘dias de nossas vidas’, todos os dias que passamos ao lado ou afastados de alguém, os dias que escolhemos seguir um rumo diferente para alcançar um objetivo, os dias que movemos a roda da nossa história e modificamos para sempre os nossos e os dias das pessoas com quem convivemos.
Dias Selvagens (Ah fei zing zyun) — Hong Kong, 1990
Direção: Wong Kar Wai
Roteiro: Wong Kar Wai e Jeffrey Lau
Elenco: Leslie Cheung, Maggie Cheung, Andy Lau, Carina Lau, Rebecca Pan, Jacky Cheung, Tony Chiu Wai Leung, Danilo Antunes, Mei-Mei Hung
Duração: 94 min.