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Crítica | Diário de Hiroshima, de Michihiko Hachiya

Um sóbrio relato do Inferno.

por Ritter Fan
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Durante oito semanas a partir do dia 06 de agosto de 1945, quando a primeira bomba atômica foi lançada no Japão, devastadoramente explodindo sobre a cidade de Hiroshima, o Dr. Michihiko Hachiya, diretor do Hospital de Comunicações de Hiroshima, manteve um diário relatando o que via e ouvia enquanto convalescia de seus ferimentos e, depois, bem aos poucos, ao retomar suas funções originais. Como o certamente mais famoso O Diário de Anne Frank, a obra que foi originalmente publicada de forma serializada em 1950, em japonês, sob o pitoresco título Curiosidades Sobre a Bomba Atômica de Hiroshima, no Teishin Igaku, um pequeno jornal médico, o Diário de Hiroshima ganhou esse título mais sóbrio e uma versão em inglês cinco anos depois graças aos esforços do médico americano Warner Wells, permitindo que os horrores da bomba atômica ganhassem uma vívida abordagem de primeira mão no Ocidente.

E sobriedade é, talvez, o melhor adjetivo para classificar minha impressão depois da leitura dessa perturbadora obra. O texto é direto, mas sem que o Dr. Michihiko Hachiya deixe transparecer sua dor, sua confusão, sua incompreensão do que acabara de acontecer na fatídica manhã do dia 06 de agosto, assim como suas impressões nos dias seguintes, tentando ele próprio sobreviver de seus ferimentos e relatando as centenas de vítimas e suas tentativas científicas para explicar o que estava acontecendo. Mas ele escreve com uma certa distância também, em um estilo que ao mesmo tempo deixa evidente a natureza de diário da obra, assim como o estilo japonês em geral de encarar as mais diversas situações com o que muitos até poderiam classificar – erroneamente, vale lembrar – como frieza.

O pikadon, palavra cunhada pelos sobreviventes da explosão atômica e que é uma onomatopeia que reúne os termos “clarão” (pika) e “som” (don), descreve até mesmo com um grau de ingenuidade o ocorrido, algo que o diarista, sem realmente ter palavras para o escopo do que acabara de acontecer, adota e se esforça em explicar a magnitude, algo que ele só realmente passa a entender alguns dias depois quando o Capitão Fujihara finalmente conta para ele que a arma foi uma bomba atômica – ainda que o significado em si da expressão não invocasse, na época, o que invoca nos dias de hoje – e quando ele finalmente consegue sair do hospital para andar pelos escombros da cidade, reparando não só na destruição generalizada, como também como as pessoas mais próximas do hipocentro foram literalmente desintegradas, algumas deixando fantasmagóricas silhuetas em paredes e em calçadas como o único lembrete de suas respectivas existências.

As tentativas do médico e de seus colegas em entender o que estava acontecendo com os sobreviventes que fluíam para o hospital que, por ser mais distante do hipocentro, sobreviveu quase intacto, são angustiantes. Sem compreender que o que eles estavam vendo era o efeito nefasto da radiação deixada pela explosão, a racionalização passa por surto de disenteria, envenenamento causado por alguma arma química na bomba e até mesmo a hipótese de que a abrupta diferença de pressão atmosférica na hora da explosão teria alguma relação com o que ele estava vendo. Mais horrível ainda é quando Hachiya começa a relatar que, mesmo os sobreviventes e parentes de sobreviventes que chegavam ao hospital sem qualquer tipo de sintoma ou ferimento, com o tempo passavam a perder cabelo e a ter pústulas na pele que, em muitos casos, levavam à morte.

Mas o diário vai além da descrição da condição dos pacientes e os efeitos retardados da explosão. O médico aborda a guerra em si, ou a guerra como vista pelos cidadãos japoneses, incluindo ele próprio, como os os sentimentos patrióticos e a preocupação com o caminho em que a campanha bélica estava tomando exacerbando-se em conversas e nos comentários dos pacientes que abarrotavam os corredores do hospital. Havia, no ar, um orgulho, um nacionalismo forte, com rumores (obviamente falsos, como sabemos) sobre contra-ataques japoneses em solo americano sendo recebidos com alegria, com a rendição japonesa no dia 15 de agosto sendo encarada com revolta e indignação. É perturbador, mas compreensível, que pessoas morrendo por razões então desconhecidas depois de dois ataques fulminantes em cidades japonesas (não demorou para a explosão em Nagasaki no dia 09 ser conhecida pelos sobreviventes em Hiroshima) preocupem-se e demonstrem raiva com o fim de uma guerra que, mesmo antes das bombas, já havia cobrado um preço altíssimo de seu país.

E, mostrando uma compreensão ainda mais ampla, compreensão essa marcada por um forte sentimento de culpa, Michihiko Hachiya relata seus receios sobre a inevitável ocupação americana do Japão, fazendo referência aos horrores perpetrados pelos próprios japoneses em solo chinês. Esse é, diria, um dos momentos mais cruciais e mais emocionantes do diário, ou seja, o medo de que eles fossem vítimas dos americanos da mesma maneira que eles próprios vitimaram os cidadãos do país vizinho durante a ocupação. É como um reconhecimento tardio, em retrospecto, de pecados passados e do karma criado por esses atos. Quando disse que a sobriedade é a marca do que Hachiya escreveu, não poderia haver um exemplo melhor disso do que essa visão mais do que clara do médico sobre o que seu país fizera como exemplo do que esperar que fosse feito com eles, algo que ele próprio, depois, demonstra surpresa quando não acontece.

Diário de Hiroshima é um raro relato em primeira mão de um dos maiores exemplos de autodestruição da humanidade e, como tal, simplesmente precisa ser lido não só por aqueles que se interessam pela Segunda Guerra Mundial, como também por qualquer um que quiser começar a compreender a magnitude  do que ocorreu a partir de uma visão “micro”. O Dr. Michihiko Hachiya, que viria a falecer somente em 1980, aos 77 anos, deixou como legado sua experiência no Inferno na Terra na esperança de que aprendamos com nossos erros. Oito décadas depois, tenho dúvidas se realmente aprendemos algo…

Obs: Na versão em inglês que li, há um prefácio escrito para a edição de 1995 do diário que resume todo o conteúdo da obra. Não é uma questão exatamente de spoiler, mas a leitura desse prefácio antes da leitura do diário em si não só é redundante, como tira o impacto do que Michihiko Hachiya relata, pelo que eu sugiro que ele seja pulado e lido apenas após o texto da obra em si.

Diário de Hiroshima ( 広島の原爆雑話 / Hiroshima Diary – Japão, 1950)
Autoria: Michihiko Hachiya
Editora original: Teishin Igaku
Editora original no Ocidente: University of North Carolina Press
Tradução (do japonês para o inglês): Warner Wells
Data original de publicação (Japão): 1950
Data original de publicação (EUA): 1955
Páginas: 238

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