Quando lançado em 1998, Deuses e Monstros foi um filme de pouca visibilidade, quando comparado ao sucesso midiático de narrativas grandiloquentes, tais como Titanic, O Resgate do Soldado Ryan, dentre outras produções da época. No circuito de premiações, a mesma coisa, apesar de ter sido reverenciado timidamente em cerimônias como o Oscar, o famoso evento representante da hegemonia da cultura imperial estadunidense. Delicado, sutil, emocionante, mas sem cair no discurso açucarado, ou nos excessos constantes em cinebiografias exaltadoras de personalidades do passado, o filme é uma dessas pequenas obras-primas do cinema que deve ser contemplada por aqueles interessados numa modalidade de enredo mais focada nas linhas de diálogos, nos conflitos dramáticos poderosos e na catarse sem moralismo. Dirigido e escrito por Bill Condon, a trama narra parte da trajetória de vida de James Whale, diretor hollywoodiano que alcançou o auge com Frankenstein, de 1931, mas adentrou pelos caminhos da decadência e ostracismo midiático após revelar a sua homossexualidade publicamente, algo considerado indecoroso pela hipocrisia de uma indústria focada nas aparências.
Tendo como inspiração o livro homônimo de Christopher Bram, Deuses e Monstros nos apresenta Ian McKellen numa atuação fenomenal como James Whale, cineasta responsável pela famosa tradução do romance de Mary Shelley realizada pela Universal e por sua continuação, A Noiva de Frankenstein, de 1935, enormes sucessos de bilheteria na época. Por meio de recursos metalinguísticos, ora com cenas reencenadas das mencionadas produções, ora com diálogos memorialísticos, a relação do protagonista com o jardineiro Clayton Boone, interpretado por Brendan Fraser, é a força vital da narrativa. Boa parte do filme, em meu ponto de vista, é a sensação de que Whale se sentia um “monstro”, isto é, alguém fragmentado pela realidade dura em contraposição aos discursos ficcionais que tecia. Em linhas gerais, um ser incompreendido, tal como a criação de Henry Frankenstein (nome do cientista no clássico cinematográfico).
Outro ponto fundamental da arquitetura dramática de Deuses e Monstros é a relação do cineasta com a sua governanta Hanna (Lynn Redgrave), conexão construída por Bill Condon por meio de momentos de forte intensidade, associado aos amplos trechos de humor, recurso que nunca é utilizado de maneira esdrúxula, num texto que em mãos errôneas, poderia ser conduzido por banalidades. Whale, logo de cara, reconhece que há algo de sedutor e magnético no jardineiro interpretado por Fraser. Lógico que sendo um homem gay, mais velho e rejeitado pelos rapazes mais jovens e preconceituosos, ele sente algo de atrativo na figura que contempla, inicialmente, com distanciamento. Musculoso, dentro dos padrões corporais preconizados como ideais, um profissional é chamado pelo cineasta para um diálogo. Resistente, a figura heterossexual deixa logo a sua marca de masculinidade devidamente delineada. Ele não curte ficar com outros homens. Ainda assim, cede aos encantos do realizador, uma personalidade famosa do passado, hoje relegada aos problemas de saúde e ao status de solitário em sua mansão.
Esse ceder, no entanto, não é sexual. Há uma atmosfera homoerótica, mas nada é consumado. A presença de uma força juvenil nos arredores da casa e, depois, intimamente dentre os cômodos, relembra Whale o auge das festas e das trocas de carícias com outros homens, sensação que aparentemente não ocorre de maneira autêntica há eras, tamanha a sensação de abandono social do personagem. O brilho no processo é a amizade que surge entre ambos. Clayton, um jovem jardineiro com menor repertório intelectual, um aprendiz com as lições de um homem mais velho que vive entre o presente angustiante e as memórias do passado. A metalinguagem, mencionada anteriormente, vai além dos diálogos e das cenas que retomam os bastidores de Frankenstein e de sua continuação. Ao longo dos 105 minutos de Deuses e Monstros, se encontra em alguns enquadramentos e ângulos da direção de fotografia de Stephen Katz, bem como nos objetos e na cenografia de Richard Sherman. Está também na aparição de Boris Karloff, aqui interpretado por Jack Betts, ator que é a representação cabal do monstro de Mary Shelley traduzido para a linguagem do cinema.
É a sua imagem mais icônica, retomada durante alguns momentos de Deuses e Monstros, seja por meio de fotografias, cartazes, cenas do filme exibidas na televisão e no corte de cabelo do personagem de Fraser. Quadrado, alto, representação que remete rapidamente o monstro, num processo de construção peculiar de imagens que respiram metalinguagem por todos os seus poros. Acompanhado pela trilha sonora de Carter Burnwell, esse é um daqueles filmes dramáticos atemporais, tranquilos, mas que não cai em momento algum no ritmo monótono. Não há rompantes nos diálogos, lágrimas em excesso, tampouco histeria ou histrionismo. É uma navegação fílmica amena, complexa para a maioria das plateias contemporâneas que almejam perseguições, muito barulho ou gritaria. Aqui, as personalidades são todas fortes, mas ganham os espectadores com a profundidade do olhar, pelos gestos contidos, pela monstruosidade de suas inquietações em um filme que versa sobre o horror da solidão e a aberração do preconceito. E, por fim, para melhor compreender o enquadramento das questões biográficas de James Whale na narrativa, esbocei alguns pormenores, de maneira panorâmica, para amarrar o texto.
Vamos lá? Whale nasceu em julho de 1889, em Dudley, Inglaterra. Antes de se tornar cineasta, trabalhou como diretor de teatro e estreou suas atividades cinematográficas no Reino Unido. Sua transição para Hollywood ocorreu em 1928, onde inicialmente trabalhou em produções menores. Porém, foi em 1931 que sua carreira decolou, graças ao sucesso de Frankenstein, tradução da peça de teatro escrita por Peggy Webling, inspirada na obra-prima de Mary Shelley. Em Deuses e Monstros, percebemos como o filme não apenas solidificou sua reputação como um dos principais diretores de Hollywood, mas também definiu o visual e a narrativa do gênero em escala industrial, algo que na época radiografada, ou seja, na idade avançada do cineasta, já não assustava mais ninguém, ao contrário, era encarado como “ultrapassado” ou “ridículo”, expressões ditas por personagens secundários que assistem ao clássico junto ao jardineiro Clayton, quando o filme ganha uma exibição na televisão.
Nos bastidores resgatados por Bill Condon, contemplamos como Whale trouxe uma estética sombria e uma profundidade psicológica ao monstro de Frankenstein, interpretado por Boris Karloff, elevando a narrativa a um nível que desafiava as percepções do público sobre o que um “monstro” realmente é. O uso inovador de iluminação dramática, cenários impressionantes e um tratamento psicológico dos personagens foram características distintivas que influenciaram cineastas posteriores. Whale tinha uma equipe de realizadores que utilizou técnicas cinematográficas avançadas para a época, tendo em vista a criação de atmosferas que se tornaram sua assinatura, incluindo a utilização de sombras e ângulos de câmera incomuns que aumentavam a tensão narrativa, emuladas do expressionismo alemão. Após Frankenstein, Whale continuou a explorar temas góticos, em especial, na sequência A Noiva de Frankenstein, que se tornou um clássico à parte, sendo muitas vezes considerado superior ao primeiro. Nesse filme, Whale não apenas aprofundou a história do monstro, mas também introduziu a figura da noiva, que desafiava, de certa forma, as normas de gênero da época. A maneira como Whale trata a solidão e a busca por aceitação em um mundo que condena a diferença na sequência é uma reflexão poderosa sobre a condição humana, uma antecipação da sua própria situação após um futuro que estabeleceu a sua saída do armário e consequente rejeição da indústria.
Lírico e profundo, Deuses e Monstros é um exemplo de cinebiografia que rejeita a perspectiva mitológica de uma personalidade do passado, mantendo o foco no fator humano, numa bela e sentimental lição de cinema.
Deuses e Monstros (Gods and Monsters | EUA, Reino Unido e Irlanda do Norte, 1998)
Direção: Bill Condon
Roteiro: Christopher Bram, Bill Condon (baseado no romance de Mary Shelley)
Elenco: Ian McKellen, Brendan Fraser, Lynn Redgrave, Lolita Davidovich, David Dukes, Kevin J. O’Connor, Mark Kiely, Jack Plotnick, Rosalind Ayres, Jack Betts, Matt McKenzie, Todd Babcock
Duração: 105 min.