Seria muito cômodo ler Deuses Americanos de acordo com seu valor de face, aquilo que está bem em sua superfície: uma guerra sobrenatural entre deuses antigos e novos tendo Shadow, um ex-presidiário recrutado por um dos lados, como uma espécie de pivô/observador. No entanto, a mais conhecida obra literária de Neil Gaiman, autor de Sandman, não é sobre deuses, sejam eles quais forem, mas sim sobre a construção de mitos e, mais ainda, sobre a construção de um país, sem deixar de crivar seu trabalho de ferinas críticas à sociedade de consumo moderna, algo que pode até mesmo deixar desconfortáveis leitores mais sensíveis.
Quando afirmo que Deuses Americanos não é sobre deuses, apenas quero dizer que é uma história sobre nós mesmos que tem deuses servindo de veículos metafóricos para nossa compreensão sobre o que é venerar algo ou alguém, seja uma figura barbada toda-poderosa, seja um automóvel de último tipo ou até mesmo essa coisa imaterial e difusa que convencionou-se chamar de internet. E engana-se também quem interpreta os acontecimentos descritos na saga de Gaiman como algo circunscrito somente aos Estados Unidos, onde se passa a ação. Sem dúvida, o autor britânico mira nos EUA, mas acerta de maneira ampla a chamada sociedade moderna, ou a sociedade da informação, aquela sociedade caracterizada, acima de tudo, pela efemeridade de tudo a seu redor. Efemeridade de ideias, de desejos, de crenças e de obsessões. Ler Deuses Americanos é, se o leitor tiver habilidade para registrar o que está nas entrelinhas (e às vezes nem tão entre linhas assim), um exercício que o desnuda e o deixa envergonhado, mas também – e principalmente – iluminado e auto-consciente. É como um despertador estridente, mas que começa com o som baixo, discreto, que aos poucos vai se impregnando e ganhando volume.
Quando a narrativa começa, somos apresentados a Shadow, homem grandalhão, mas tranquilo, que está prestes a sair em condicional da prisão onde está há quase três anos. No entanto, não exatamente para sua surpresa, ele recebe a notícia que sua amada esposa Laura falecera e que ele, portanto, sairia alguns dias antes. No processo de volta para casa, ele é abordado pelo misterioso Sr. Wednesday, um golpista que lhe oferece um emprego de natureza não muito clara, mas que se parece muito com o de um guarda-costas, algo que Shadow nega imediatamente, mas cujas circunstâncias o levam a capitular e, enfim, aceitar. O resultado disso é que ele é arremessado em meio a uma vindoura tempestade que potencialmente marca o início da guerra de deuses antigos, que vivem escondidos e muitos quase como indigentes nos EUA, e deuses novos, representantes do que é hoje corrente, como a televisão, a internet, o shopping center.
No entanto, é importante saber dosar as expectativas. Neil Gaiman emprega a maior parte de seu livro para construir esse universo mítico populado pelos mais diversos deuses que vieram para a América nas mentes e desejos de imigrantes e escravos, algo que o autor ilustra primorosamente em interlúdios quase desconectados da narrativa principal, demonstrando um vasto trabalho de pesquisa dos mais diversos panteões. O que quero dizer com isso é que a tal “guerra” é algo relegado a segundo, talvez terceiro plano, pois seguimos exclusivamente a jornada de Shadow, uma jornada que tem perfeita lógica, mas só se o leitor tiver paciência e souber saborear os mais diversos fragmentos de informação que são deixados ao longo do caminho.
Em sua alma, o livro é uma road trip pelos recônditos perdidos dos EUA, com suas realmente míticas atrações de beira-de-estrada, cidadezinhas congeladas, mas perfeitas de uma forma sinistra, pluralidade cultural e, no geral, um ambiente hostil à verdadeira adoração divina, seja ela qual for. Em sua carne, o livro é um estudo sobre a memória e seu papel na criação de entidades sobre-humanas e fantásticas para explicar o inexplicável e o quanto algo ou alguém exige que seja lembrado para que esse algo ou alguém seja o que é ou o que quer ser. Não precisamos falar de deuses para isso. Basta pensarmos e nos perguntarmos se conhecemos nossa história, se conhecemos nossa árvore genealógica, se conhecemos nossa família, se conhecemos nossos colegas de trabalho ou nossos vizinhos. Basta talvez compreendermos que o que hoje veneramos talvez seja apenas nós mesmos, com cada um de nós olhando apenas o nosso próprio umbigo, com um mundo reduzido àquilo que alcançamos com a mão, sem muito (ou nenhum, na verdade) esforço.
Não revelarei segredos, pois uma significativa parte do prazer da leitura dessa obra de Gaiman é aos poucos descobrir que personagens são que deuses antigos. Aqueles que tiverem domínio da língua inglesa, assim como algum conhecimento sobre mitologia nórdica, egípcia, hindu, árabe, africana e outras ganharão essa outra camada de divertimento, com um trabalho detetivesco fascinante. Até mesmo a versão em português mais recente da obra – traduzida por Leonardo Alves – deixa diversos nomes no original, como o próprio Shadow e seu contratante, Sr. Wednesday, assim como a deusa Easter, pois as traduções (Sombra, Sr. Quarta-Feira, Páscoa…) quebrariam completamente os significados pagãos embutidos em muitos deles, em uma decisão que é ao mesmo tempo acertada, por preservar a intenção original do autor e arriscada por potencialmente alienar muita gente. Em não havendo nenhum conhecimento do inglês ou de mitologia, é importante que a curiosidade seja atiçada e que uma pesquisa paralela seja feita para abrir horizontes, algo que o tradutor ajuda a fazer ao final em uma nota ao leitor, mas que só deve ser lida mesmo após o término do livro, pois contém spoilers.
Gaiman rearruma, rearranja e refaz os deuses antigos, emprestando-lhes uma fascinante camada humana, sem esquecer-se de suas principais características divinas. Há pouco desenvolvimento desses personagens fora do eixo Shadow-Wednesday e, mesmo neste eixo, os personagens são tratados mais como arquétipos do que como pessoas completas. Em volta deles, há figuras e nomes novos entrando e saindo quase que sem cerimônia na medida do necessário para a evolução narrativa. No caso dos deuses novos, o “pouco desenvolvimento” que mencionei simplesmente desaparece, sendo substituído por seus “nomes” ou apelidos – um deles, por exemplo, é apenas “garoto técnico”, ainda que ele mais comumente seja classificado por Gaiman apenas como “garoto gordo” – e algumas características marcantes derivadas de seus nomes. E isso pode parece estranho para muitos leitores, especialmente considerando que Deuses Americanos, com robustas 576 páginas, não é um livro pequeno ou de imediata assimilação.
No entanto, há uma lógica por trás dessa escolha, pois sim, foi algo deliberado da parte de Gaiman. A obra é, acima de tudo, como mencionei no começo, sobre um país, sobre a construção de mitos em um país do chamado Novo Mundo com população composta de nativos quase dizimados e por uma pletora de povos europeus, africanos e asiáticos que vieram depois. É a terra que importa aqui, terra essa representada primeiro por uma figura que aparece em sonho para Shadow e, depois, pela jornada que ele e o Sr. Wednesday empreendem pelos EUA. A efemeridade do que conhecemos é um reflexo da efemeridade que Gaiman escancara. O pouco de muito parece valer mais do que o muito de pouco. Parem e pensem e me digam se isso não é uma verdade cada vez mais cultivada e perseguida modernamente? Vivemos em um mundo de 140 caracteres, não um de 1.000 palavras como é essa crítica que será lida por poucos, eu sei. Portanto, desenvolver para que? Mergulhar fundo para que? Gaiman usa um artifício que subrepticiamente vai ficando cada vez mais evidente a cada virar de página. Além disso, os deuses novos são “vividos” por nós diariamente e são facilmente identificáveis ao nosso redor, sendo efetivamente intuitivos, pelo que o desenvolvimento arriscaria ser redundante.
Claro que ele talvez pudesse ter dedicado algumas delas para abordar e aprofundar outros personagens, mas Gaiman cria um universo debaixo do mundo comum e ele tenta abraçar todas as culturas e religiões possíveis, fugindo, apenas, das de origens grega, por ser a mais comumente vista por aí e judaico-cristã para, muito provavelmente, evitar polêmicas ou desvios de finalidade (mas a versão lida contém páginas extras que revelam o que seria o primeiro encontro de Shadow com Jesus Cristo, algo jamais incluído oficialmente nas duas versões existentes da obra). Com isso, ele simplesmente não tem tempo e espaço para assim o fazer, especialmente porque ele preferiu não se curvar a modismos e escrever tomos e mais tomos serializados intermináveis para suprir uma demanda do provavelmente existente e muito presente “deus das coleções”.
E o que ele escreve funciona. E muito bem. Mas só se o leitor estiver preparado para largar o comodismo de lado e descascar a proverbial cebola, mesmo que, para isso, fique com os olhos irritados.
Obs: Li o livro na chamada Edição Preferida do Autor, ampliada por Gaiman em 2003 e publicada mundialmente a partir de 2011. No entanto, além de ler a versão em português, publicada pela Editora Intrínseca e traduzida por Leonardo Alves, escutei quase que simultaneamente o áudio-livro em inglês narrado por George Guidall em uma espécie de experimento que acabou dando certo e que facilitou a compreensão ampla dos trocadilhos e escolhas difíceis do tradutor brasileiro.
Deuses Americanos (American Gods, Reino Unido – 2001/2003/2005/2011)
Autor: Neil Gaiman
Editoras originais: Headline (Reino Unido), Hill House Publishers (Reino Unido – Edição Preferida do Autor – edição limitada), William Morrow (EUA)
Datas de publicação: 2001 (texto original), 2003 (Edição Preferida do Autor – edição limitada), 2005 (Edição Preferida do Autor – somente Reino Unido), 2011 (Edição Preferida do Autor – resto do mundo)
Editoras no Brasil: Editora Conrad (texto original), Editora Intrínseca (Edição Preferida do Autor)
Datas de publicação no Brasil: 2002 (Conrad), 2016 (Intrínseca)
Tradução (edição da Intrínseca): Leonardo Alves
Páginas (edição da Intrínseca): 576