Desventuras em Série é um seriado atípico. A própria estrutura de cada temporada já não nos permite olhá-lo como olhamos para outras séries. A questão é que, dividindo os arcos em blocos de dois episódios, a ironia está presente justamente na repetição de um conjunto gigantesco de eventos infortúnios. Os irmãos Baudelaire chegam em um novo cenário, personagens inéditos dão as caras, o Conde Olaf (Neil Patrick Harris) retorna em um disfarce excêntrico – e uma performance sensacional (a minha preferida dessa temporada foi a do detetive), grandiosas sequências musicais (a minha preferida dessa temporada foi a do Espetáculo Carnívoro), mas ninguém o percebe logo de cara, gerando mais episódios de tristeza e sofrimento. E quanta “tristeza”! Com um humor afiadíssimo, que não nos faz gargalhar, sejamos honestos, mas cria uma atmosfera surreal extremamente convidativa e desconvidativa, agradável e desagradável de acompanhar, sendo os fortes os únicos capazes de acompanhar tantas desventuras, o trio definitivamente passará por situações ainda mais dolorosas que as anteriores, mas nada que quebre o tom da temporada, abrindo buracos de drama pesado no meio de tanta leveza auto-crítica. Muito pelo contrário, é a própria presença de Lemony Snicket (Patrick Warburton), narrador da série e pseudônimo adotado pelo autor dos livros, que garante tanto as doses de chamadas para o desastre, prenúncios de desventuras em série, quanto as ondas de aleatoriedades em metáforas sem pé nem cabeça. O narrador, dessa vez, ainda está muito mais envolvido com os acontecimentos, o que o torna ainda mais interessante; uma das peças-chaves para o funcionamento da segunda temporada de Desventuras em Série.
Todavia, nem tudo são flores quando mais quatro segmentos de dois episódios cada adotam a mesma linha narrativa dos da temporada passada, criando um ciclo exaustivo, não necessariamente da narrativa, mas do que acontece com os personagens e quem eles se tornam, se é que eles se tornam algo a mais do que já eram. Com exceção da bibliotecária (Sara Rue) e de Esmé Squalor (Lucy Punch), não há um mínimo de desenvolvimento de personagem e isso inclui o trio principal. Por falar neles, mesmo que os atores sejam eficazes em transmitir cada personalidade de uma forma adequada, os papéis não passam de artifícios narrativos ambulantes, visto que a história não serve para desenvolver os três, mas os três são usados para desenvolver a história, criando aparatos tecnológicos ou tomando decisões que levam a consequências necessárias para o progresso. A relação entre eles também é um adendo negativo. Quando o seriado teria aproveitado muito mais uma troca de cenário também com uma troca de interações, podendo separar os irmãos e colocar os trigêmeos Quagmire para se relacionar mais efetivamente com os protagonistas individualmente, os três permanecem juntos a temporada inteira, não criando novidades nas conexões estabelecidas. O carinho e afeto que um nutre pelo outro, nessa altura do campeonato, é redundante, não enaltecendo novidades e camadas nas conexões. De qualquer forma, os irmãos Baudelaire funcionam como irmãos Baudelaire, mas não como indivíduos. Sunny (Presley Smith), no entanto, dá margem para a melhor piada de toda a série: o crescimento, de uma temporada para outra, da atriz, inevitável, é explicado rapidamente, mas de uma maneira sensacional.
Felizmente, cada uma das quatro partes tem suas peculiaridades e o entrelaçamento de mistérios vai ficando mais evidente, instigando a curiosidade do espectador. Sendo assim, podemos dizer que na segunda temporada muito mais coisa importante acontece na vida dos Baudelaire, tanto coisas positivas quanto negativas. Especialmente, as coisas negativas que vão ganhando proporções catastróficas. A incapacidade das pessoas ao redor dos nossos protagonistas não perceberem as tramoias do Conde Olaf continua. O Sr. Poe (K. Todd Freeman), aliás, é o ápice dessa ignorância do povo. A cada omissão de uma sagacidade para perceber o perceptível mais consequências surgem para as crianças, ainda mais sérias que a mera mudança de tutores. É legal notar como subitamente, em raríssimas ocasiões, a voz da razão lhe sobre a cabeça. Os únicos que percebem a maleficência debaixo de trajes curiosos são os voluntários, personagens em uma rota de mistério que vai se desenvolvendo lentamente, mas eficientemente pelos dez episódios, mas que não serão explorados na crítica para evitar spoilers. No mais, com tanta adição de novas figurinhas para esse álbum de loucuras e desventuras, há de se enaltecer o excelente trabalho de Nathan Fillion como Jacques Snicket, irmão de Lemony, que desempenha um trabalho consideravelmente breve, mas engrandecido pela narração de Lemony e pelas constantes referências que um faz do outro. Em suma, acaba sendo até mesmo tocante a jornada do herói com cara de francês. Dos dispensáveis, Carmelita Spats (Kitana Turnbull) é tão irritante, mas tão irritante, que acaba sendo fiel ao seu propósito dentro da série: ser irritante.
Desventuras em Série, contudo, é um seriado de pequenos momentos, pequenos detalhes, e a segunda temporada está recheada destes. Notem como mais uma vez a localização temporal é impossível, dada a existência de tecnologias anacrônicas em um cenário quase retro-futurista. É certamente um sinal de um mundo irreal, assim como as pessoas deste são movidas por comportamentos instáveis, impossíveis de estabelecer uma coesão. Os Cultores Solidários de Corvídeos e suas regras intermináveis, além do anseio desenfreável por queimar crianças (uma mudança hilária e surreal de uma pena que deveria ser apenas uma multa) são um sinônimo disso. Ademais, referências a cultura popular, como a citação de versos de Wannabe, das Spice Girls, além de uma clara alusão a O Iluminado (a trupe do Conde Olaf continua hilária) moldam uma temporada de grandes altos. Outrossim, a fotografia aproveita muito bem a estranheza dos cenários, alguns muitas vezes inóspitos (percebam como demora para aparecer mais pessoas tanto na vila quanto no hospital, não dando margem para uma sensação de realidade), mesmo que a computação gráfica tenha os seus baixos. Os figurinos, entretanto, são impecáveis. Com tantos toques de genialidade, que vão além dos deméritos evidentes em construção de personagem e até em ritmo de evolução do mistério, melhor que o da temporada anterior mas ainda não o ideal, a série ousa terminar em um cliffhanger, literal e figurativo. Agora é esperar ansiosamente (ou seria nervosamente) a terceira – e provavelmente última – temporada de uma série, não perfeita, mas definitivamente gostosa de acompanhar para quem tem os nervos necessários. Para quem não tem, é melhor não olhar.
Desventuras em Série (A Series of Unfortunate Events) – 2ª Temporada – EUA, 2018
Criado por: Mark Hudis, Barry Sonnenfeld, baseado nos livros de Lemony Snicket
Direção: Barry Sonnenfeld, Bo Welch, Alan Arkush, Loni Peristere
Roteiro: Joe Tracz, Daniel Handler, Sigrid Gilmer, Joshua Conkel
Elenco: Neil Patrick Harris, Patrick Warburton, Malina Weissman, Louis Hynes, K. Todd Freeman, Presley Smith, Lucy Punch, Dylan Kingwell, Avi Lake, Usman Ally, Matty Cardarople, Cleo King, John DeSantis, Jacqueline Robbins, Joyce Robbins, Sara Canning, Patrick Breen, Sara Rue, Nathan Fillion, Roger Bart, Kitana Turnbull, Malcolm Stewart, BJ Harrison, Barry Sonnenfeld, Tony Hale, Mindy Sterling, Carol Mansell, Ithamar Enriquez, Ken Jenkins, John Bobek, Kerri Kenney-Silver, David Alan Grier, Robbie Amell, Kevin Cahoon, Bonnie Morgan, Allison Williams
Duração: 10 episódios de cerca de 50 min. cada