Destinos à Deriva é um exemplar espanhol da sempre utilizada e costumeiramente cativante premissa de luta pela sobrevivência em condições impensáveis e muitas vezes para lá de improváveis. Sejam obras de grande orçamento como Gravidade, Náufrago e O Regresso, ou outras mais modestas como Águas Rasas, Pânico na Neve e A Queda, é no mínimo fascinante ver como diferentes cineastas conseguem usar um fiapo narrativo e, normalmente, doses generosas de clichês e tropos do gênero, para criar tensão e perigo das mais variadas formas, fazendo o espectador quase que literalmente roer suas unhas até o desfecho da história.
Na produção comandada pelo catalão Albert Pintó, acompanhamos a luta de Mia (Anna Castillo), uma jovem (muito) grávida à deriva no Oceano Atlântico, dentro de um contêiner esburacado. Quando li a sinopse, imaginei que haveria uma carga política mais diretamente relacionável com o mundo real no longa, já que imediatamente conectei o suplício de Mia com as diversas e infelizmente mortais travessias de imigrantes de zonas de guerra para diversos países da Europa, mas o roteiro escrito a quatro mãos curiosamente toma o caminho mais difícil de uma distopia em que uma crise de escassez leva o governo autoritário da Espanha (e presumivelmente de outros países) a lidar com a situação eliminando crianças e grávidas.
A construção desse pano de fundo e todos os eventos seguintes que fazem com que Mia, tentando fugir para a Irlanda, acabe sozinha no meio do mar dentro do tal contêiner todo furado resultam, sem papas na língua, em uma meia hora inicial cansativa e estranhamente genérica que não consegue desenvolver nada com competência. É informação demais para muito pouco tempo e, ao mesmo tempo, Pintó parece querer basicamente se livrar disso tudo para efetivamente, então, trabalhar a luta de Mia por sua sobrevivência e pela de seu bebê ainda em seu ventre, o que acaba criando uma sensação de que uma montagem esperta de um minuto na abertura do longa (à la O Incrível Hulk) mais do que daria conta do recado.
Felizmente, porém, quando finalmente Mia percebe o tamanho do problema que precisa enfrentar, Destinos à Deriva melhor consideravelmente. Tudo o que esperamos de um filme do gênero está lá, inclusive a irritante sequência em que a câmera passeia por todo o material que a protagonista precisará para tentar sobreviver ao longo da minutagem restante, ainda que o roteiro tente dar uma de esperto ao apresentar objetos que, em uma análise perfunctória, não têm utilidade alguma em uma situação como a do filme, como potes Tupperware e televisões. Mas isso faz parte da brincadeira e é interessante acompanhar Mia transformando-se de uma mulher à beira de um ataque de nervos em uma náufraga que não deixa nada a dever a Robinson Crusoé. Aliás, sendo honesto, Mia dá um banho em Crusoé e outros náufragos semelhantes, pois, em determinada altura ainda bem cedo no filme – e isso não é spoiler, convenhamos – ela já não está mais exatamente sozinha no contêiner.
Mostrando que um ator, por mais que se esforce, está muitas vezes preso ao material que tem para atuar, o trabalho de Anna Castillo não convence na meia hora inicial que comentei anteriormente, imediatamente melhorando quando, sem esse peso desconjuntado por trás, sua personagem começar a naturalmente galgar seu espaço e a transformar-se. Não é uma atuação daquelas de se aplaudir como a de Tom Hanks em Náufrago, mas Castillo passa a mais do que convencer o espectador como uma mãe capaz de absolutamente qualquer coisa por seu bebê, mesmo que, por vezes, alguns reveses sejam solucionados de maneiras muito fáceis e convenientes, como é o caso de seu ferimento na perna a certa altura, fazendo com que o peso dramático seja quase nulo.
A quadra de roteiristas, por seu turno, também é capaz de criar situações variadas para que o longa mantenha com vigor ao longo de sua razoavelmente avantajada duração, com a direção de Pintó encontrando boas saídas para trabalhar o espaço confinado de maneiras visualmente cativantes, seja meramente usando a luz do sol que passa pelos furos do contêiner e ilumina o rosto de Mia, seja criando sequências mais sofisticadas e até ousadas que envolvem animais marinhos. E sim, como é comum neste tipo de filme, o espectador precisa armar-se com uma generosa dose de suspensão de descrença para que tudo funcione razoavelmente a contento, mas eu não preciso dizer isso para ninguém, não é mesmo?
Inicialmente perdido em sua “construção de mundo”, Destinos à Deriva acaba desenvolvendo-se em uma competente luta pela sobrevivência em uma situação impossível graças a uma produção habilidosa no emprego do orçamento, um roteiro que não deixa o filme ficar na mesmice, uma direção que se esforça em ser visualmente interessante e uma atriz principal que melhora a cada perrengue por que sua personagem passa. E, claro, é sempre bom aprender sobre os mais variados usos que potes plásticos podem ter!
Destinos à Deriva (Nowhere – Espanha, 29 de setembro de 2023)
Direção: Albert Pintó
Roteiro: Indiana Lista, Ernest Riera, Seanne Winslow, Teresa de Rosendo
Elenco: Anna Castillo, Tamar Novas, Tony Corvillo, Mariam Torres, Irina Bravo, Victoria Teijeiro, Lucía Soria, Mary Ruiz, Edu Bulnes, Antonio Buíl, Saïd El Mouden, Kaabil Sekali, Andrew McGurk, Saorla Wright, Tonu Sureda Luther
Duração: 109 min.