O imaginário do pecado e a concretização do perdão. É mais ou menos isso que o diretor David Lean traz em seu filme Desencanto, na transição mágica da estação do trem, onde o romance de traição não existe pela falta ou pela compensação, mas quando ‘a trave’ é tirada do olho.
A magia da estação de trem, tanto como fundamento espacial quanto social, é algo que se transforma aos olhos de quem assiste a obra. No quesito mais direto do audiovisual, tratando a imagem e o som com poder emotivo, das sinalizações da chegada do trem à mudança de iluminação da fotografia como imersão da protagonista Laura (Celia Johnson), coloca-se o espectador entre o temor e a paixão. O artifício narrativo da não-linearidade que o diretor David Lean parece gostar muito de buscar nos roteiros que dirige, começando suas histórias pelo final, exercitam a memória e a fantasia de quem assiste, considerando o que Laura conta para o esposo e o que ela faz nas quintas-feiras com o amante. Nisso é que cria-se um mundo alternativo no filme, um mundo onde a construção das cenas comparativas – como a presença de pessoas ou não na estação, entre outros lugares repetidos que vão indicar a mudança dos personagens – colocam uma ambiguidade poderosa em cada plano fotográfico escolhido por Lean e pelo diretor de fotografia Robert Krasker.
Esse poder, a partir de uma montagem bastante sutil que não deixa fugir o realismo dos acontecimentos – parece que não estamos assistindo a um filme, mas a uma história, por uma janela – entra em um delicioso conflito sobre até que ponto o romance é real. Pode-se perceber que a relação das pessoas com o segredo de Laura não parece reagir de maneira verossímil ao julgamento de que ela estaria traindo o esposo, a ponto de o filme se divertir – com isso, quando ela mesma fala para o esposo que está indo para o cinema com um médico. Assim, o pecado que vai formando mentiras e fechando o cerco dos espelhos – David Lean começa a usar os espelhos como porta do reflexo do pecado imaginado/real – chega ao patamar mental da estação com o esvaziamento de pensamentos, centrado apenas no amante.
Todo o percurso do filme é a transformação do espaço na própria aventura romântica da protagonista, com o verbo e a imagem soando contrapostos e se complementando no relato de Laura para o esposo versus o que nós espectadores vemos. Se por um lado ela vira uma grande mentirosa, para nós, ela se torna verdadeira. Esse é o ponto chave do perdão, recolocando uma moral puramente social na profundidade sobrenatural, avassaladora, ao ponto de a personagem passar mal e pensar na morte pela transitoriedade da “liberdade”.
O tal pecado, na verdade, é a tentação por uma “eternidade” romântica e transitória, como o trem. O expurgo mental da protagonista se torna um confessionário mais libertador do que o cisco tirado de um olho. Muito se fala do perdão como esquecimento de experiências pecaminosas, pensando num crivo religioso e moral superficial, mas o perdão sobrenatural de David Lean é a junção harmônica entre o valioso julgamento como experiência, o cisco tirado do olho, como diria o Sermão do Monte, e a valiosa consequência de realmente pegar o trem que não julga para onde se vai porque conhece o verdadeiro caminho.
Desencanto (Brief Encounter) – Reino Unido, 1945
Direção: David Lean
Roteiro: Noël Coward, Anthony Havelock-Allan, David Lean, Ronald Neame
Elenco: Celia Johnson, Trevor Howard, Stanley Holloway, Joyce Carey, Cyril Raymond, Everley Gregg, Marjorie Mars, Margaret Barton
Duração: 86 minutos