Na aurora da Nouvelle Vague Tcheca, Vojtech Jasný, em um de seus primeiros longas de ficção, realizou Desejo (1958), obra exibida no Festival de Cannes, indicada à Palma de Ouro e vencedora do prêmio de Melhor Seleção, pelo júri do festival. Dividida em quatro partes, nas quais temos estágios diferentes da vida humana, a película mostra com bastante lirismo e poesia as características centrais de cada estágio do homem, indo da inocência à libido e do amargor de uma vida à morte, esta última, mostrada com forte sentimentalismo e poesia, sem fatalismo ou o lamentos desesperados. O longa propõe um ciclo, e é exatamente isto que ele nos entrega.
A primeira parte, O Menino que Queria Encontrar o Fim do Mundo, representa a primavera da vida, um momento de descoberta e florescimento em vários níveis. O garoto protagonista está prestes a conhecer a irmã recém-nascida e se pergunta como os bebês nascem. Ele imagina que são os corvos ou as cegonhas que os trazem, mas o pai desmente essa versão. Em dado momento, o garoto sonha que recebe um ovo enorme, dentro do qual está sua irmã. Todo o segmento é tenro e esteticamente impressionante, talvez o mais impressionante de todo o filme — que é inteiro belo, com uma fotografia cheia de contrastes entre ambientes extremamente escuros e panorâmicas sobre os campos no interior da Tchecoslováquia. Esse clima bucólico é ainda mais propício para o tratamento pretendido por Jasný, que realiza um verdadeiro ode à vida no lugar onde ela, em interação com os humanos, é mais abundante.
Esse afastamento do perímetro urbano também possibilitou alguns empurrões dramáticos. Veja, por exemplo, a aproximação do cineasta com o surrealismo no sonho de Joska, no primeiro segmento, e o tom de cinema mudo que este esquete possui. Já a transição entre este momento de planos um pouco mais longos, com abundante movimento de câmera e maior uso de takes com fotografia em forte contraste vem com As Pessoas na Terra e as Estrelas no Céu, que representa o verão na vida do homem e que me lembrou muito o curta-metragem Os Pivetes, de Truffaut, realizado um ano antes.
Nesta segunda parte, vemos os conflitos pela posse e pelo amor em cena, aparecendo aí também as primeiras indicações críticas de Jasný para a sociedade de seu país. E isso é bastante justificável se levarmos em consideração o roteiro, já que no primeiro momento temos crianças em destaque e a crítica social ainda não faz parte do cotidiano delas (importante dizer que o longa adota como guia narrativo o ponto de vista dos personagens, não de um narrador externo). A chegada do amor, apesar da docilidade com que é retratada, traz também a frustração, a dúvida e alguma sugestão de ciúme. De todos os quatro segmentos, este é o mais burocrático, e vejo nisso algo muito curioso, poque é como se através da forma do filme o diretor estivesse mostrando a tentativa dos personagens (especialmente o mais velho) em “fazer a coisa certa”, com cuidados extremos que, no final de tudo, parece pouco instigante para quem está de fora. Esse pensamento é comprovado quando os homens que disputavam a demarcação de suas terras no início do filme (em cenas com simpático humor e ótima mixagem de som e trilha sonora) aconselham e consolam o homem apaixonado pela jovem Lenka, de 17 anos, que finaliza o “verão” em estado de graça, a bordo de um trem, em direção à cidade de Praga.
O outono chega com Andela, momento em que vemos representada a fase madura da vida, cheia de amarguras e sonhos não realizados ou desejos reprimidos. Trata-se do bloco mais melancólico e pessimista do longa, com uma personagem que ora está engajada contra a ordem social local — mais uma pesada crítica de Jasný, desta vez, ao projeto das fazendas coletivas e às ações das cooperativas agrárias –, ora é destruída pela culpa de não ter se casado cedo e ter escolhido cuidar do pai doente e da fazenda que no futuro será sua.
Pela primeira vez em sua carreira, Jasný precisou mudar ou adicionar algo em uma produção para despistar os censores do governo. A preocupação inicial veio de ninguém menos que Otakar Vávra, diretor de longa e respeitada carreira na Tchecoslováquia, que aconselhou Jasný a filmar uma versão menos pessimista da história (de fato, foi filmada uma versão diferente de Andela, que acabou se perdendo) e uma versão mais otimista que se colocasse em contraponto a ela (e assim que nasceu a ideia para As Pessoas na Terra e as Estrelas no Céu). Com apoio engajado do excelente fotógrafo Jaroslav Kucera, que acabava de voltar de trabalhos forçados no campo (entendem agora de onde vem a forma bela, poética e ao mesmo tempo claustrofóbica e trágica de filmar as paisagens naturais?), a concepção pessimista de Andela ganhou vida.
Mamãe, o quarto e último segmento do longa, fecha o ciclo com a chegada do inverno. O roteiro, no entanto, não se limita apenas a mostrar a morte e a decadência do corpo. O ciclo se fecha com a possibilidade de criação de um outro ciclo, representado pelo nascimento de uma criança, o que, em outro cenário, foi mostrado na primavera, no início da fita. É como se Jasný estivesse abrindo as portas para uma revisão das condições apresentadas em cada estação do ano (a reescrita de seu pano de fundo simbólico). E a mesma postura coesa que comporta a continuação da vida ao final de Mamãe também é percebida na fotografia, que evita cenários escuros; e na trilha sonora menos épica, caminhando mais para sonatas ou pequenos ensaios que denotam a simplicidade da vida em seu fim e seu início.
Desejo é um filme sobre estar vivo. Desejar saber, desejar amar, desejar ter paz de espírito e desejar viver ou dar continuidade à vida são as temáticas estruturais da obra que, embora não seja completamente livre de problemas (basicamente centrados na finalização dos segmentos 2 e 3), é uma emotiva reflexão, daquelas capazes de fazer qualquer um se apaixonar à primeira vista pelo diretor e pelo fotógrafo e desejar comprar uma casa no campo, plantar amigos, livros… e nada mais. Uma sólida raiz para a Nouvelle Vague Tcheca, que começaria a dar os seus frutos mais significativos dois anos depois.
Desejo (Touha) — Tchecoslováquia, 1958
Direção: Vojtech Jasný
Roteiro: Vojtech Jasný, Vladimír Valenta
Elenco: Jan Jakes, Václav Babka, Jana Brejchová, Jirí Vala, Frantisek Vnoucek, Otto Simánek, Vera Tichánková, Václav Lohniský, Anna Melísková, Ilja Racek, Jirí Pick
Duração: 91 min.