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Crítica | Desconstruindo Harry

por Luiz Santiago
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A Secretaria de Cinefilia e Livromania adverte: o acúmulo de catarses e neuroses podem fazer qualquer autor descer ao inferno de sua própria mente, encontrar-se com seus próprios personagens e criar um enredo que acasala Morangos Silvestres com Oito e Meio e os livros de Philip Roth.

Depois de dirigir o musical Todos Dizem Eu Te Amo, Woody Allen se sentia-se praticamente completo como artista. É verdade que ele ainda não tinha esgotado todos os gêneros cinematográficos — e ainda não o fez: ainda estamos esperando aquele western woodyano –, mas certamente já havia feito tudo o que realmente desejava em termos de brincadeiras ou manipulação de regras, escolas, modelos, tendências e, em parte, gêneros do cinema. Novamente, sua preocupação para um novo filme voltava-se para a reflexão sobre sua própria pessoa — colocada aqui de forma exagerada, expandida, modificada — como criador, alguém em crise que precisava parar e pensar em como trazer à tona mais uma grande ideia. E dessa tempestade de vontades, entre muitos palavrões e metáforas sexuais, nasceu Desconstruindo Harry (1997), filme que rendeu a Allen a sua 13ª indicação ao Oscar de Melhor Roteiro.

O filme é muito parecido com o drama enfrentado pelo quase-Woody Allen de Memórias (1980), mas desta vez vemos o diretor-roteirista-ator como um literato que basicamente copia sua vida pessoal para os livros que escreve e ganha muito dinheiro com isso. Essa exposição particular modificada aparece em Desconstruindo Harry como um curioso exercício de metalinguagem, um desafio à psicanálise e uma ligação do cinema com a literatura, principalmente com o formato de crônica (a vida de Harry Block) e conto (a representação da vida de Harry através de seus personagens e histórias).

O tom de insanidade e agilidade da película nos é dado já na abertura, quando ouvimos a voz de Annie Ross cantando Twisted (a letra desta canção caiu como uma luva aqui) e a montagem propositalmente picotada e descontinuada de Susan E. Morse (Manhattan, A Rosa Púrpura do Cairo, Um Misterioso Assassinato em Manhattan) mostrando a chegada dramática de Lucy, personagem interpretada de forma bárbara por Judy Davis, à casa de Harry, um sempre neurótico e dramaticamente interessante (porque interpreta um único personagem: ele mesmo) Woody Allen. Em pouco tempo o espectador percebe qual é a intenção do filme e depois que a primeira digressão é feita, no meio de uma cena, notamos o caminho que será trilhado e embarcamos em um exercício bastante complexo de narrativa.

Daí para frente, cabe-nos o prazer de desfrutar um desfile de personagens-espelho interpretados por um elenco notável, formado, dentre outros atores e atrizes, por Julia Louis-Dreyfus, Tobey Maguire, Robin Williams, Julie Kavner, Mariel Hemingway, Demi Moore, Stanley Tucci, Jennifer Garner, Billy Crystal e Paul Giamatti, alguns deles apenas nomes em ascensão na época e em papeis bem pequenos no filme, embora isso não impeça o espectador de arregalar os olhos cada vez que um deles surge em cena e desfilam pela tela ao longo de 96 minutos.

À medida que o filme se aproxima do final e a vida pessoal de Harry, com todas as angústias e loucuras típicas dos artistas woodyanos se mistura com seus contos, crônicas e romances, além de os personagens ficcionais começarem a pular para esta realidade (fica aí a questão: física ou mentalmente?) e vice-versa, percebemos que o filme fica mais sombrio, a comédia ganha ares de humor negro e o tom ameaçador que pairava sobre o protagonista desde a primeira sequência volta agora, com muito mais contexto e intensidade.

A fotografia de Carlo Di Palma é a grande coroação visual da fita, marcando com louvor a despedida do fotógrafo dos trabalhos de Woody Allen, depois de 12 filmes em 11 anos de parceria. Favorecendo o conteúdo claustrofóbico sugerido pelo roteiro e executado com bastante intensidade pelo desenho de produção (Santo Loquasto) e pela direção de arte (Tom Warren), Di Palma nos traz movimentos rápidos de câmera, muitos planos médios e uso dramático de zoom para ensaiar uma identificação dramática com os personagens, algo que nunca acontece, pois a montagem interrompe a identificação nos levando para um plano geral ou outro plano médio, sempre nos afastando de todos como se nos lembrasse da condição diegética de cada um e da nossa posição como consumidores de um produto de ficção.

A descida de Harry ao inferno (juntamente com a ideia de um Robin Williams literalmente fora de foco) é o grande destaque da fita, abrindo as portas para o equilíbrio tardio e temporário, mas bem vindo, do autor com seus personagens e uma espécie de compensação para nós também, do outro lado da tela, que somos convidados a refletir sobre o absurdo do processo criativo e da existência tão prezada pela humanidade. A conversa com o diabo e a paz interior vinda com um pouquinho de meta-referências nos deixam saciados ao final.

Durante 96 minutos, observamos a desconstrução rigorosa de um autor-personagem e de seus personagens-autores, para, no fim, chegarmos à conclusão de que assistíamos a um pouco para nós mesmos. Principalmente os espectadores que criam alguma coisa. A “construção”, neste final de filme não precisa levar o mesmo tempo. Ela demora apenas alguns segundos. É como o iluminar repentino de uma inspiração para um novo começo, depois de se conhecer muito bem a fonte de onde tudo irá minar. Harry, após ser desconstruído, juntará os seus pedaços artificialmente em um papel e encantará a muitos leitores com verdades mentirosas sobre si mesmo. Do mesmo modo que o filme sobre esse processo deixa os espectadores tão organizados quanto um quadro cubista, montando as peças de um quebra-cabeça cuja figura final irá variar de pessoa para pessoa. Mais uma vez, ao falar de si mesmo, Woody Allen consegue fazer com que sejamos parte de sua loucura.  

Desconstruindo Harry (Deconstructing Harry) — EUA, 1997
Direção: Woody Allen
Roteiro: Woody Allen
Elenco: Judy Davis, Julia Louis-Dreyfus, Stephanie Roth Haberle, Dan Frazer, Joel Leffert, Lynn Cohen, Richard Benjamin, Joe Buck, Jane Hoffman, Tobey Maguire, Woody Allen
Duração: 96 min.

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