- Há spoilers. Leiam, aqui, as críticas dos episódios anteriores e das demais aparições do personagem na televisão.
Demolidor: Renascido continua com os problemas resultantes de ser uma série produzida inicialmente de uma maneira e, depois, alterada completamente, mas sem que o material originalmente filmado tenha sido completamente descartado. É, para todos os efeitos, uma temporada Frankenstein que provavelmente carregará essa “qualidade” consigo até seu final. Não é que o resultado seja imprestável, vejam bem, pois ele está muito longe disso, mas sim que, por mais que Dario Scardapane tenha tentado, ele não vem conseguindo criar total unicidade narrativa e, com isso, os episódios vêm cambaleando entre o que era para ter sido e o que acabou sendo. Se tem um aspecto que, porém, fica cada vez mais claro para mim é que uma série do Demolidor em que Matt Murdock permanece como advogado na maior parte do tempo, usando seus poderes e habilidades com muita parcimônia, é perfeitamente factível e, no frigir dos ovos, é o que mais tenho apreciado aqui, mesmo compreendendo a vontade de muitos de vê-lo uniformizado distribuindo pancadas a torto e a direito.
Sic Semper Sistema, com o título sendo uma referência à frase encurtada em latim sic semper tyrannis, que pode ser traduzida como “assim sempre aos tiranos”, comumente usada em situações de abuso de poder, começa lidando com as consequências do assassinato de Hector Ayala, primeiro indicando nada discretamente uma passagem de amuleto super-heróico para sua sobrinha Angela del Toro (Camila Rodriguez) e, ao que tudo indica, a absolvição do policial Powell (Hamish Allan-Headley) desse crime em razão da audição aguçada de Murdock que não percebe alterações em seus batimentos cardíacos depois que ele o provoca. Isso leva, então, a um segundo momento em que o advogado cego novamente usa seus poderes para localizar o cartucho da bala usada na execução, descobrindo que ela tem a marca do Justiceiro, o que, por sua vez, leva ao encontro dos dois, com Jon Bernthal retornando ao seu personagem mais uma vez. Não é, porém, uma reunião exatamente orgânica, já que Murdock obviamente não desconfia de Frank Castle e eu não sei muito bem o que exatamente ele esperava ganhar com a conversa que, claro, é usada mais como mais um elemento para aos poucos trazer o Demolidor de volta, com Bernthal encarnando muito bem o papel de terapeuta de machadinha.
O caso pro bono que Murdock pega, defendendo um homem sem teto que furtou pipoca caramelizada, tem, ironicamente, um tratamento jurídico e sócio-econômico muito mais interessante e melhor do que todo o julgamento de Hector Ayala. Vemos, ali, o primeiro momento em que o título do episódio é plenamente justificado, com o sistema servindo como ratoeira para aqueles que pouco ou nada têm, com até mesmo Murdock demorando a entender o mato sem cachorro em que Leroy Bradford (Charlie Hudson III) vive toda sua vida. Quando falo que a abordagem, aqui, foi mais eficiente do que a sucessão de clichês fáceis que vimos no episódio anterior, quero dizer que o roteiro de David Feige (um advogado que se tornou roteirista e que não, não tem relação familiar alguma com Kevin Feige) e Jesse Wigutow não segue o caminho usual, mesmo pecando um pouco no didatismo, entregando, uma narrativa ágil, rápida e que existe para passar uma mensagem bem clara que, interessantemente, é reverberada pelos problemas burocráticos pelos quais o próprio Wilson Fisk passa para governar a cidade, tornando-o, na prática, outra vítima do sistema. Essa costura narrativa toda é que deixa muito claro para mim que Demolidor sem Demolidor funciona e funciona bem, não que eu não goste de ver o Atrevido pulando pelos telhados da cidade e usando seu bastão para nocautear meliantes, lógico.
O que Scardapane simplesmente precisa evitar são cenas como a que “vemos” (as aspas são relevantes) a sócia de Murdock em plano geral e contraluz falando com ele ao telefone e dirigindo o advogado até Leroy. Primeiro porque essa cena é completamente desnecessária, uma verdadeira excrecência narrativa que só existe porque… eu sei lá porque… nem consigo imaginar isso fazendo sentido na cabeça de alguém… Depois, ficou evidente que aquela ali não era a atriz e arrumaram um tapa buraco só para depois não dizerem que esqueceram da personagem, deixando dolorosamente claro o remendo que foi feito para uma cena idiota. Afinal, não tiveram pudor algum de limar Cherry do episódio, não é mesmo? Então o mesmo poderia ser feito com… como é o nome dela mesmo?
Finalmente ver o famoso e completamente encrencado Adam (Lou Taylor Pucci) foi muito divertido, especialmente porque o momento vem precedido de um jantar digno do Rei do Crime e não aquele café da manhã de restaurante três estrelas Michelin que vimos ele “degustar” com Vanessa no episódio anterior. Todas aquelas calorias e o prazer no rosto de Fisk enquadram à perfeição o cárcere e tortura a que Adam é submetido todos os dias, explicando, finalmente, o porquê daquelas feridas nas mãos de Fisk. Tenho para mim que Vanessa tem total consciência de que algo assim acontece com seu ex-amante e que ela também se refestela só de pensar que seu marido pode estar em algum lugar “tirando satisfações” com seu amante que, para ela, se duvidar, tem como função justamente “trazer de volta” o Wilson Fisk que ela ama, em um relacionamento que talvez possamos chamar de doentio só para usar um eufemismo.
A introdução de Muse, agora em carne e osso, é algo que vejo com receio. Espero que a entrada de um supervilão – que, tomara, não será um inumano como nos quadrinhos – não desvie o pouco de foco que a temporada tem tido na forma como trata a corrupção e violência na força policial e o cabo de guerra entre as funções públicas e privadas de Wilson Fisk. Não era em tese necessário mais uma peça nesse tabuleiro, pelo que só nos resta esperar que o novo mascarado não passe, de repente, a ser o centro de atenções em uma temporada que, aproximando-se da metade, não havia ainda mostrado esse viés mais banal de maluco malvado de máscara sendo perseguido por maluco bonzinho de máscara.
Sic Semper Sistema, apesar dos pesares, encontra um equilíbrio melhor entre as duas “versões” de Demolidor: Renascido e, mesmo com dificuldade, contribui de maneira mais coesa para a progressão de uma narrativa sem o famoso traje vermelho que, provavelmente mais cedo do que mais tarde, dará as caras novamente. É só esperarmos. E que Adam tenha muitos jantares com Wilson Fisk nesse ínterim!
Demolidor: Renascido – 1X04: Sic Semper Sistema (Daredevil: Born Again 1X04: Sic Semper Systema – EUA, 18 de março de 2025)
Showrunner: Dario Scardapane
Direção: Jeffrey Nachmanoff
Roteiro: David Feige, Jesse Wigutow
Elenco: Charlie Cox, Vincent D’Onofrio, Margarita Levieva, Zabryna Guevara, Ayelet Zurer, Michael Gandolfini, Nikki M. James, Genneya Walton, Arty Froushan, Clark Johnson, Jon Bernthal, Elizabeth A. Davis, Charlie Hudson III, Lou Taylor Pucci, Camila Rodriguez, Hamish Allan-Headley
Duração: 55 min.