- Há spoiler dos 16 primeiros minutos do primeiro episódio.
Quase sete anos depois do lançamento da terceira temporada de Demolidor pelo Netflix, o querido personagem cego da Marvel Comics retorna para uma aguardadíssima série solo depois de brevemente aparecer em Mulher-Hulk: Defensora de Heróis, Eco e Seu Amigão da Vizinhança Homem-Aranha. Como dois episódios foram ao ar no mesmo dia, fizemos as críticas separadas de cada um, com a do primeiro sendo redigida antes de o segundo ser conferido para garantir a “pureza” dos comentários. Vamos a elas!
1X01
Meia Hora do Céu
Sei que a única pergunta que interessa à maioria das pessoas é se o retorno do Demolidor para uma série solo ficou à altura da produção da Era Marvel/Netflix e minha resposta para isso, julgando apenas pelo primeiro episódio, é que a série, agora completamente debaixo do teto da Marvel Studios e sob o comando de Dario Scardapane, que a assumiu depois que a primeira versão foi jogada quase que completamente no lixo, precisará comer muito feijão com arroz para chegar lá. O problema dessa pergunta é que ela é injusta demais, pois a série Demolidor, do Netflix, provavelmente é a melhor série de algum personagem da Marvel desde 2008, isso se não for uma das melhores obras audiovisuais de super-herói (de qualquer editora) já feitas desde que o mundo é mundo. O sarrafo estabelecido há alguns anos foi altíssimo e, ainda que devamos sempre esperar o melhor, talvez seja mais saudável sermos razoáveis.
O que temos neste primeiro episódio é a boa e velha apresentação de um novos status quo, algo que é feito de maneira explosiva pelo atentado mortal de Benjamin “Dex” Poindexter, mais conhecido para os leitores de quadrinhos como o sádico supervilão Mercenário (Wilson Bethel), a Franklin “Foggy” Nelson (Elden Henson) diante de uma atônita Karen Page (Deborah Ann Woll) que leva a uma sequência de pancadaria entre o assassino e o Demolidor (Charlie Cox). É um começo esperto que traz de volta tanto Henson quanto Woll, somente para tirá-los da estrutura da série, com Foggy morto e Karen, traumatizada, mudando-se para São Francisco, o que abre espaço para um recomeço que não esquece o que veio antes, mas que educadamente diz que o que veio antes é passado e não importa mais tanto. Em outras palavras, é um meio-termo, uma espécie de “acordo” não negociado entre produção e espectadores, cada parte cedendo um pouco para que o Demolidor possa voltar substancial, mas não completamente da maneira que lembrávamos dele.
Confesso que não tenho problemas com esse meio termo. Afinal, se isso acontece costumeiramente nos quadrinhos, que têm muito mais facilidade em fazer sempre a mesma coisa, imagine no audiovisual em que os interesses de todos – inclusive dos atores, não podemos esquecer – precisam convergir e serem equalizados? Meu problema mesmo está justamente naquela que era para ser uma sequência inicial de pancadaria inesquecível, que marcasse de forma indelével a morte de Foggy, já fazendo a série começar no seu ponto alto. Quando a poeira baixou e tivemos o salto temporal de um ano, fiquei muito triste pelo que vi. Nada funcionou de verdade, seja Matthew “Matt” Murdock como o Demolidor de CGI que marca sua primeira e muito feia aparição na série, seja o tiro em Foggy que não tem drama, só histerismo, seja, principalmente, o plano sequência de luta entre herói e vilão.
Mesmo que a direção de Aaron Moorhead e Justin Benson tenha mantido o estilo visceral em que cada soco machuca tanto socador quanto socado e que as demonstrações de atletismo cansem os personagens, marcas alvissareiras da série original, a decupagem foi horrorosa, levando a montagem a se virar para fazer um plano sequência bagunçado, pouco inspirado e tão picotado que nem sequer parece fazer algum esforço para dar a impressão de estarmos vendo algo “sem cortes”. Planos sequência alongados são, hoje em dia, tão comuns que é ônus das produções torná-los realmente relevantes e tudo o que conseguiram colocar no ar, aqui, foi um festival de incompetência visual que culmina com o Demolidor matando o Mercenário somente para, ato contínuo, descobrirmos que o vilão não morreu coisíssima nenhuma, o que imediatamente esvazia o pecado mortal cometido por Murdock e faz de sua desistência de ser o Demolidor uma escolha vazia que, em última análise, até podemos dizer que desonra o sacrifício de Foggy.
No lado de Wilson Fisk (Vincent D’Onofrio), a história anda melhor, com sua esposa Vanessa (Ayelet Zurer, ótima no papel, lembrando um pouco Robin Wright como Claire Underwood, em House of Cards) sendo revelada como a Rainha do Crime que assumiu seus negócios depois do tiro no olho que ele levou de sua protegida Eco. A tensão criada entre o casal é boa e pode dar pano para manga, assim como a linha narrativa do “Prefeito Wilson Fisk” pode resultar no que a série precisa para tornar mais esse retorno de Murdock ao seu traje de diabo (pois, temos que lembrar, ele já desistiu e retornou uma vez) algo que tenha peso dramático e não algo simples e corrido (realmente estou torcendo para não o vermos uniformizado por um bom tempo já que a escolha foi de fazê-lo se aposentar). O embate puramente verbal entre Murdock e Fisk em um diner na cidade, com um “calmamente” em frente ao outro com bons amigos, é, sem dúvida alguma, o ponto alto desse recomeço e o único momento realmente memorável do episódio, com os dois atores, especialmente D’Onofrio, dando um show ao fazer seus personagens frearem com esforço e sacrifício visíveis seus instintos mais basais e sombrios, como dois vulcões prestes a entrar em erupção.
É por tudo isso que eu afirmei, no início, que Meia Hora do Céu não me deixou confiante pelo que está por vir, seja na comparação (decididamente) injusta com a série original, comparação essa que não pretendo mais fazer, a não ser quando essencial, seja por meramente querer uma série de qualidade como se essa fosse a primeira vez que vemos Charlie Cox vestir seu traje vermelho. Fica a torcida para que o retorno do Demolidor valha todo o esforço despendido e toda a expectativa construída.
1X02
Ótica
Ótica parece um episódio de outra série que tem coincidentemente os mesmos personagens e funciona de maneira muito mais fluida e unitária que o primeiro que, eu sei, tem o ônus de sacudir o status quo e funcionar como um recomeço, ônus esse que ele não conseguiu carregar com desenvoltura. O segundo episódio, para todos os efeitos, é real começo dessa nova fase do Demolidor, por assim dizer, já que o passado fica no passado quase que completamente, com o único elemento que permanece sendo as inevitavelmente crescentes dúvidas de Matt Murdock sobre voltar ou não a ser o Demolidor em uma Nova York controlada – agora legalmente – pelo ex-Rei do Crime que tem como uma de suas plataformas a supressão dos vigilantes mascarados.
Novamente, D’Onofrio comanda a série toda vez que está em tela, com um direito até mesmo a um momento Tony Soprano em que ele e a esposa vão para terapia de casal com aparentemente a única terapeuta da cidade, já que ela é coincidentemente Heather Glenn (Margarita Levieva), o interesse amoroso de Matt depois de um encontro às cegas (he, he, he) promovido por sua nova sócia Kirsten McDuffie (Nikki M. James). Mas falar sobre D’Onofrio, muito sinceramente, é chover no molhado, pois não me lembro de algum filme ou série em que ele tenha atuado em o ator não tenha sido o destaque absoluto. Claro que Charlie Cox fica longe de fazer feio e carrega nas costas o seu lado da história que, neste segundo episódio, começa a tomar relevo efetivamente quando ele passa a defender Hector Ayala (Kamar de los Reyes), o Tigre Branco, de uma acusação de assassinato de policial que vem de uma sequência de pancadaria que surpreende pelo seu fim e pelo fato de ela não ser básica, do tipo “preto ou branco”.
A postura anti-vigilantismo de Fisk, a importância de ele ficar ao lado da força policial da cidade, algo sublinhado pela vlogueira BB Urich (Genneya Walton), sobrinha do falecido jornalista Ben Urich (uma das mortes da série original que mais senti, já que o personagem tinha muito a oferecer ainda) e manipulado por Fisk de maneira a evitar a aposentadoria de protesto do comissário de polícia Gallo (Michael Gaston, que parece ter rejuvenescido de maneira impressionante) que detesta o prefeito, é o que torna tudo mais interessante, algo amplificado pela descoberta por Cherry (Clark Johnson) de que Ayala é o Tigre Branco. Percebe-se, muito claramente, no episódio, uma nova convergência narrativa que não se prende ao passado e foca em uma nova história que poderia muito facilmente ser a primeira do Demolidor no audiovisual, com lados bem estabelecidos, mas não completamente puros, no sentido da mais absoluta vilania de um lado e a mais absoluta bondade de outro, com o roteiro fazendo o que tem que fazer para manter os personagens no fio da navalha.
Obviamente que tudo culmina em uma nova sequência de pancadaria, já que Murdock, impaciente para descobrir o paradeiro do homem que Ayala diz ter salvado no metrô e que pode levar à sua absolvição, usa seus poderes – gosto como isso vem sendo usado na série, lembrando muito o Superman esforçando-se para filtrar a cacofonia, só que com uma pitada de paciência e concentração que normalmente não tem espaço em filmes e séries de super-heróis – e parte para defendê-lo da morte certa pelas mãos da dupla de policiais corruptos. A diferença da luta que acontece ao final de Ótica para a outra que acontece no começo de Meia Hora do Céu é como vinho e água. Em Ótica, ela acontece como medida de necessidade extrema, da mais pura autodefesa por Murdock depois que ele aguenta o espancamento com dentes cerrados e aquela raiva novamente começando a entrar em ebulição. Quando ele finalmente explode, para evitar que seja executado a sangue frio, o que vemos é realmente como se aquele vulcão do diner no episódio anterior entrasse em uma erupção breve, mas furiosa e potencialmente mortal. Sem invencionices, sempre precisar recorrer a jogo de câmera, a sequências intermináveis sem cortes e mantendo a mais pura visceralidade, a direção de Michael Cuesta parece encontrar o “novo padrão” de lutas protagonizadas pelo Demolidor.
Se Meia Hora do Céu deixou-me reticente, Ótica vem como um bálsamo que aponta para a direção certa. Demolidor: Renascido ainda precisa encontrar seu ponto de equilíbrio, mas o segundo episódio da série parece indicar que a demolição da linha narrativa original da série e sua reconstrução como uma outra coisa bem diferente (pelo que dizem, claro) parece ter sido a decisão correta. Ainda bem que ainda há muito espaço para essa história ser desenvolvida e fica a esperança de que a entrada de Dario Scardapane traga aquilo que os órfãos do Demolidor na telinha queriam ver, sem, porém, meramente repetir o passado.
Demolidor: Renascido – 1X01 e 02: Meia Hora do Céu / Ótica (Daredevil: Born Again 1X01/02: Heaven’s Half Hour/Optics – EUA, 04 de março de 2025)
Showrunner: Dario Scardapane
Direção: Aaron Moorhead e Justin Benson (1X01), Michael Cuesta (1X02)
Roteiro: Dario Scardapane (1X01); Matt Corman e Chris Ord (1X02)
Elenco: Charlie Cox, Vincent D’Onofrio, Margarita Levieva, Deborah Ann Woll, Elden Henson, Wilson Bethel, Zabryna Guevara, Nikki M. James, Genneya Walton, Arty Froushan, Clark Johnson, Michael Gandolfini, Ayelet Zurer, Kamar de los Reyes, Michael Gaston
Duração: 60 min. (1X01), 50 min. (1X02)