Obs. 1: A crítica não contém spoilers da segunda temporada, apenas da primeira. Leia nossa crítica sem spoilers da primeira temporada aqui e um Entenda Melhor, com spoilers, claro, com todas as referências da primeira temporada aos quadrinhos, aqui.
Obs. 2: Confira nosso Entenda Melhor com todas as referências e easter-eggs da segunda temporada da série, aqui.
O Diabo da Cozinha do Inferno está de volta e a Marvel, ABC e Netflix entregam uma mais do que sólida segunda temporada, introduzindo o Justiceiro e Elektra, dois amados heróis (ou anti-heróis) dos quadrinhos Marvel, sem perder a linha mestra da série. Trata-se de uma temporada madura, com algumas surpresas aqui e ali e absolutamente satisfatória, ainda que fique à sombra da primeira.
Agora que a evolução do Demolidor é coisa do passado, com o herói atuando já com seu uniforme vermelho pela cidade e com Matt Murdock (Charlie Cox), Foggy Nelson (Elden Henson) e Karen Page (Deborah Ann Woll) trabalhando juntos para fazer o pequeno escritório de advocacia crescer para além dos clientes que pagam os serviços em frutas e tortas, há muito espaço para os novos showrunners, Doug Petrie e Marco Ramirez, com consultoria de Drew Goddard, expandirem os horizontes do herói urbano.
A escolha narrativa foi a de mini-arcos, o primeiro lidando com Frank Castle, o Justiceiro (vivido por Jon Bernthal, o Shane de The Walking Dead) e o segundo com Elektra Natchios, ex-namorada de Matt referenciada indiretamente na primeira temporada e vivida por por Élodie Yung, que curiosamente fez outra ninja que se veste de vermelho – Jinx – em G.I. Joe: Retaliação. Esses dois mini-arcos ocupam os sete ou oito primeiros episódios da temporada, mas cada um deles entra pelo outro, ou seja, não há um tratamento estanque dos personagens.
No primeiro arco, vemos o Justiceiro lidando com as gangues da cidade que passaram a se multiplicar no vácuo criado pelo encarceramento de Wilson Fisk na temporada anterior. Os métodos do novo vigilante, claro, são os mais radicais possíveis, com massacres constantes espalhando corpos pela cidade, revoltando a polícia e, claro, o Demolidor, especialmente depois que Karen diz a Matt que o surgimento de novos vigilantes provavelmente são inspirados pelo Diabo Atrevido. O interessante da apresentação do Justiceiro é que ele é uma espécie de força destrutiva da natureza, sem muitas palavras, sem hesitação, mas com um código de ética retorcido que tem lógica e que funciona perfeitamente na telinha.
Jon Bernthal, pode-se dizer, nasceu para viver o personagem que finalmente ganha sua versão definitiva depois de três longas e um curta desde 1989. O objetivo é mostrá-lo como um ser cru guiado por um desejo de vingança que apenas muito aos poucos vai sendo desvelado. Em lado oposto, além do Demolidor, há a ambiciosa promotora do município Samantha Reyes (Michelle Hurd, que apareceu, no mesmo papel, em Jessica Jones), que manipula tudo e a todos para obter o que quer.
Quando o mini-arco introdutório acaba, somos então apresentados a Elektra e o foco passa a ser na relação conturbada dela e de Matt, no passado e no presente. No entanto, os showrunners, como mencionei, não cometem o erro básico de trabalhar com estruturas rígidas. Os arcos vão se entremeando com eficiência, ocasionalmente tangenciando. Yung faz uma Elektra praticamente retirada diretamente dos quadrinhos, especialmente de Demolidor: O Homem Sem Medo, minissérie de origem do herói escrita por Frank Miller e desenhada por John Romita, Jr. Há flasbacks que dão estofo à relação dos dois, mas o desenvolvimento da personagem em si, especialmente na segunda metade da temporada, deixa a desejar (mais sobre isso em breve).
Em certos momentos, as ações paralelas parecem completamente desconectadas, mas a leitura que faço disso é semelhante à dos quadrinhos, que muitas vezes abordam assuntos não necessariamente ligados em edições sucessivas que formam um todo unificado. Na televisão, confesso que a transposição desse artifício narrativo não funciona completamente sem percalços, mas não é nada que detraia da experiência.
Quando os referidos arcos introdutórios são “encerrados”, a história, então, ganha outra dimensão e a estrutura anterior dá espaço à uma narrativa que trabalha as situações e personagens anteriores com um pouco menos de eficiência. Dois assuntos (serei críptico propositalmente para evitar spoilers) são reintroduzidos, um deles em um excelente episódio passado na prisão, e a ação ganha uma dimensão muito maior, potencialmente mais abrangente do que apenas Hell’s Kitchen.
E, então, o problema mais saliente da temporada começa a aparecer. Um mistério da temporada anterior é citado e passa a ser o carro-chefe nos episódios finais. Apresentando como algo imponente, poderoso e potencialmente destruidor, o que acaba acontecendo é anti-climático e até mesmo simplista, especialmente quando Elektra passa a diretamente fazer parte desse aspecto da trama. E o foco exagerado em algo que acaba não trazendo dividendos acaba também apagando Frank Castle da temporada, que passa, então a ser razoavelmente mal aproveitado em uma “missão paralela” estranha e um tanto quanto mal-ajambrada.
Mesmo com os problemas apontados, a temporada esbanja nas lutas. Há uma selvageria intensa nos embates entre Demolidor e Justiceiro, já que Castle luta de maneira mais animalesca, sem a graça de Murdock e, em oposição, quando Elektra entra na equação, a coreografia passa a ser extremamente graciosa, até mesmo sensual. A diferença entre estilos é clara e muito bem vinda. Não considero o conjunto das lutas melhor do que o da primeira temporada unicamente porque lá Matt Murdock estava em uma espécie de aprendizado e o lado visceral de cada soco, cada chute era mais saliente e chocante. Na segunda temporada, o tom é mais super-heroístico, digamos assim.
A fotografia da série continua estupenda. Com sequências em sua maioria noturnas, o trabalho de iluminação realça as sombras profundas e trabalha muito bem o uniforme tático vermelho do herói que, conforme vimos no final da temporada anterior, ganha (ainda bem!) um tom emudecido que se mescla bem com a noite. Há muita movimentação de câmera – mas não câmera tremida -, mesmo com os personagens parados e diversos momentos que tentam ser inventivos, com planos sequência longos e cortes disfarçados dando a impressão de uma sequência só, valendo especial nota uma no terceiro episódio com o Demolidor descendo as escadas de um prédio.
As menções ao Universo Cinematográfico Marvel são discretas, mas existem, demonstrando que o universo urbano do estúdio está bem inserido no universo maior, mas que um não depende do outro, o que é ótimo em termos narrativos e, muito sinceramente, espero que continue assim. Já a ligação entre uma temporada e outra e entre as duas temporadas e a primeira temporada de Jessica Jones é constante, criando a exata impressão de um microcosmo urbano que eventualmente nos levará até Os Defensores.
A segunda temporada de Demolidor pode não ser melhor do que a primeira, mas isso pouco importa. O que realmente interessa é que a série é televisão madura de primeira que mostra que o universo de super-heróis pode sim trazer séries do mais alto gabarito que não deixam nada a dever aos melhores dramas oferecidos por aí.
Cliquem na seta para ler nossas primeiras impressões sobre a 2ª temporada
O texto abaixo foi originalmente publicado em 15 de março de 2016
Obs. 1: O Netflix disponibilizou ao Plano Crítico apenas os sete primeiros episódios da 2ª temporada de Demolidor. Assim, os comentários que seguem são preliminares e serão complementados (ou alterados completamente, depende) e acrescentados da avaliação em “estrelas” assim que a série inteira for liberada no dia 18 de março. Não há nem sombra de spoilers na análise a não ser que o leitor realmente não faça ideia dos dois novos e proeminentes personagens Marvel que aparecem.
Obs. 2: Leia nossa crítica sem spoilers da primeira temporada aqui e um Entenda Melhor, com spoilers, claro, com todas as referências da primeira temporada aos quadrinhos, aqui.
Avaliar uma temporada de série sem uma visão completa é certamente uma tarefa ingrata, mas sete episódios permitem um panorama bastante confiável e posso dizer com confiança que a segunda temporada de Demolidor não desaponta. Aliás, iria além: apesar da troca de showrunner e da adição de dois personagens queridos dos leitores dos quadrinhos e que nunca haviam recebido um tratamento audiovisual à altura, a regência de Doug Petrie e Marco Ramirez, com consultoria de Drew Goddard, que originalmente desenvolveu a série, é segura e costura uma narrativa única ao mesmo tempo em que cria sub-tramas ou arcos que se complementam com bastante organicidade. Tendo realmente adorado a primeira temporada, que pessoalmente considero uma série de TV de super-herói equivalente ao que o Batman de Christopher Nolan significou para o cinema desse sub-gênero (apenas os dois primeiros filmes, para ficar claro), arrisco afirmar que a segunda temporada não fica nada a dever.
O primeiro mini-arco lida com o Justiceiro, vivido por Jon Bernthal, o Shane de The Walking Dead. Trata-se de um novo vigilante em Hell’s Kitchen exterminando violentamente um grande número de gangues e grupos mafiosos. Quando a temporada abre, sua presença é sentida quase que imediatamente, ainda que sua aparição efetiva demore um pouco a acontecer, mas nada nem próximo ao segredo mantido em relação a Wilson Fisk na primeira temporada. Bernthal é, finalmente, o Justiceiro que os fãs do personagem aguardavam desde que o personagem foi adaptado para o cinema pela primeira vez em 1989: silencioso, soturno, eficiente ao extremo e perturbado. Nada de uniformes, nada de armamentos impossíveis, apenas um exército de um homem só lidando, à sua maneira, com o crime local em resposta a um trauma do passado. O interessante é que, como Karen Page (Deborah Ann Woll) menciona, a presença do Justiceiro parece ser inspirada na própria existência do Demolidor, o que torna o caso muito pessoal para Matt Murdock (Charlie Cox) que, claro, abomina as mortes e parte para lidar com o novo vigilante.
Com isso, o lado sombrio do personagem titular se sobressai e é colocado em xeque. O que realmente de bom o Demolidor trouxe para Nova York? Há espaço para o vigilantismo mascarado (ou não)? E a fotografia espetacularmente sombria, com tons amarelados “doentes”, que marcou a primeira temporada, está de volta, mantendo a atmosfera estabelecida para o lado dos heróis urbanos do Universo Cinematográfico Marvel. Neste mesmo diapasão, o uniforme tático do Demolidor, que debutou no último episódio da temporada inaugural, prova que funciona muito bem na telinha e convence o espectador de que é assim que um herói desta natureza poderia mesmo vestir-se. A escolha do tom emudecido do vermelho – cor obviamente “errada” para um herói que se vale da noite e da escuridão para ter vantagem sobre seus inimigos – mescla o uniforme do herói às sombras da cidade, mantendo suas características dos quadrinhos (sem o DD no peito, algo completamente desnecessário) tanto quanto possível.
No segundo mini-arco (mas fiquem tranquilos que a história do primeiro mini-arco continua, só que de outra forma), Murdock recebe a visita de sua ex-namorada e amor de sua vida Elektra Natchios, citada indiretamente na primeira temporada. Vivida por Élodie Yung, que curiosamente fez outra ninja que se veste de vermelho – Jinx – em G.I. Joe: Retaliação, a entrada da personagem soa um pouco conveniente demais, mas, aos poucos, por intermédio de flashbacks (que, por sua vez, parecem ter sido inspirados, ainda que de longe, em Demolidor: O Homem Sem Medo, minissérie de origem do herói escrita por Frank Miller e desenhada por John Romita, Jr.), vamos nos acostumando a ela, ainda que seu arco narrativo pareça desconectado demais de todo o resto para realmente funcionar em sua plenitude, isso pelo menos até o episódio disponibilizado, claro.
Sempre entremeando um arco e outro, há a excelente relação entre Matt, Foggy (Elden Henson) e Karen, ainda lutando para serem pagos em dinheiro e não em favores ou frutas, tortas e guloseimas e geral e tendo que enfrentar a impiedosa promotora do município Samantha Reyes (Michelle Hurd, que apareceu, no mesmo papel, em Jessica Jones). A dinâmica do triângulo central alimenta a série de humanidade e de dramas pessoais, com Foggy funcionando como uma espécie de conselheiro prático para o idealismo de Matt. Karen, por sua vez, carrega um ar melancólico, dando a entender, assim como na primeira temporada, que ela tem um passado guardado a sete chaves (e os leitores dos quadrinhos, claro, sabem que ela realmente tem). Só neste foco a série já merece destaque, por saber trabalhar seus personagens principais fora do lado recheado de ação da temporada.
Falando em ação, ela é constante, mas não exagerada, com lutas muito bem coreografadas que fazem de tudo para mostrar que um embate físico não é como levar seu cachorro para passear pelo quarteirão. Cada soco, cada chute, cada malabarismo (alguns improváveis, mas faz parte) ganha peso e drena o vigor dos personagens. É, talvez, o mais próximo de lutas “de verdade” que uma série ou filme baseado em quadrinhos tenha conseguido colocar nas telas até hoje. Mesmo assim, pelo que vi até agora, a primeira temporada ganha nesse quesito em particular, por parecer mais visceral ainda, com um Matt Murdock ainda se adaptando à sua vida dupla.
A segunda temporada de Demolidor parece ter vindo para confirmar que a parceria Marvel + Netflix, criando seu próprio mini-universo urbano, é o exemplo que as séries de televisão baseadas em quadrinhos deveriam usar como inspiração (mas não cópia). Vida longa ao Homem Sem Medo!
Demolidor- 2ª temporada (Daredevil – Season 2, EUA – 18 de março de 2016)
Criação: Drew Goddard, baseado em personagens criados por Stan Lee, Bill Everett, Gerry Conway, John Romita Sr. e Frank Miller
Showrunner: Doug Petrie, Marco Ramirez, com Drew Goddard como consultor
Direção: vários
Roteiro: vários
Elenco: Charlie Cox, Deborah Ann Woll, Elden Henson, Jon Bernthal, Élodie Yung, Stephen Rider, Rosario Dawson, Michelle Hurd, Rob Morgan, Peter McRobbie, Brett Mahoney, Marci Stahl, Scott Glenn
Duração: 13 episódio, 740 min. no total (aprox.)