Home QuadrinhosMangá Crítica | Dementia 21 – Vol. 1

Crítica | Dementia 21 – Vol. 1

Insanidade, pura insanidade!

por Ritter Fan
317 views

Como não sou um grande leitor de mangás modernos (por modernos, entenda qualquer coisa originalmente publicada a partir da década de 90) ou mesmo antigos, comprei Dementia 21 unicamente por seu título e por sua capa, sem fazer ideia sobre o autor ou sobre a premissa para além da sinopse em uma das orelhas do primeiro volume (de dois) encadernado da Editora Todavia, em um bonito trabalho de impressão, vale dizer. Munido desse meu quase completo desconhecimento e até uma certa resistência aos quadrinhos nipônicos, comecei a ler o que dizem ser a criação máxima do mangaká Shintaro Kago.

E que insanidade é Dementia 21, prezados leitores!

Publicado no Japão entre 2010 e 2013, o mangá conta a história da jovem cuidadora de idosos Yukie Sakai em seu trabalho diário acompanhando os mais diferentes velhinhos, com suas mais variadas necessidades e enfermidades, uma premissa que reflete muito bem o respeito que o povo japonês tem pelos idosos. Essa premissa razoavelmente mundana é, porém, completamente enganosa. Para começo de conversa, não há uma história contínua. Cada capítulo funciona como as antigas séries de TV americanas e os tokusatsu japoneses, ou seja, seguindo a estrutura de caso da semana, ou, mais apropriadamente dizendo, a “demência da semana” pela qual Sakai tem que passar. Além disso e principalmente, cada capítulo é um exercício de imaginação que mergulha sem dó nem piedade no surreal, no bizarro, no asqueroso, no doentio e também no hilário, em uma combinação de espanto e revolta com inteligentes sátiras e críticas sociais bem japonesas, seja sobre os idosos em si, sejam sobre suas megalópoles, seu sistema de saúde, sua estrutura hierárquica para lá de rígida e seu sistema político, dentre várias outras, com direito a uma inserção quase infinita de referências variadas à cultura pop nipônica que o trabalho de pesquisa e tradução de Drik Sada mastiga para os leitores com muito cuidado e esmero, com o uso constante de notas de pé de página (minha única reclamação, como pré-idoso que sou, é que a diagramação e a fonte usadas nessas notas tornam a leitura muito difícil).

O que Shintaro Kago faz é uma espécie de competição com ele mesmo, começando de maneira razoavelmente normal, com sua protagonista sendo alvo de inveja de um de seus pares que manobra para colocá-la trabalhando para idosos mais difíceis do que o normal, levando-a, então, a lidar com assombrações, idosos telepatas, alienígenas, lares de idosos construídos em um mar de contêineres e um sem-número de coisas tão estranhas que tentar explicar não só é difícil, como tira um pouco da graça da leitura, da surpresa que cada capítulo trará aos leitores. E eu posso garantir que não faltam surpresas e não falta originalidade no que Kago escreve e desenha, o que me leva a temer um pouco o que se passa na mente do mangaká, e olha que eu já li muita coisa estranha na vida. A arte de Kago, aliás, é uma surpresa em si mesma. Sua capacidade de distribuir painéis e de preenchê-los é fascinante, assim como é fascinante sua capacidade aparentemente sem fundo de materializar suas ideias das maneiras mais diferentes e originais possíveis, tornando cada virada de página algo que o leitor que comprar a premissa e gostar de loucuras, aguarda com ansiedade.

Mas Dementia 21, pelo menos para mim, não foi uma leitura daquelas de uma sentada só. Arriscaria dizer, até, que ler com velocidade o trabalho de Kago é um desperdício de potencial. Com a estrutura de caso da semana, há, naturalmente, um pouco de repetição na construção do início de cada história, ainda que cada desenvolvimento seja único, com desfechos dos mais variados. Além disso, diria que é muito importante aproveitar o já citado trabalho de notas de pé de página de Sada, alguns deles incitando pesquisas mais profundas para o enriquecimento da leitura. E, claro, a arte em si exige uma apreciação diferenciada, sem aquela correria ansiosa para virar a página, mesmo que a tentação sem dúvida esteja lá. Trata-se, portanto, de uma obra que fica melhor se apreciada com moderação, evitando sua banalização e uma leitura perfunctória.

Dito isso, Dementia 21 deveria vir com um aviso de que o mangá é perigosamente viciante e razoavelmente enlouquecedor (e digo isso como elogio, lógico). Shintaro Kago, em sua feroz competição consigo mesmo para criar uma história melhor do que a anterior, revela-se como um monstruoso mangaká capaz de enfeitiçar os leitores mais arredios. E não, não lerei o segundo e último volume agora, porque é justamente o último. Esperarei um pouco mais para poder eventualmente reler o primeiro e aí sim mergulhar na segunda parte das desventuras de Yukie Sakai no país dos idosos completamente insanos.

Dementia 21 (ディメンシャ 21 – Japão, 2010)
Roteiro: Shintaro Kago
Arte: Shintaro Kago
Editora original: ComicLoud
Data original de publicação: 2010 a 2013
Editora no Brasil: Editora Todavia
Data de publicação no Brasil: 05 de março de 2020
Tradução: Drik Sada
Páginas: 280

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais