O sugestivo nome desse documentário surgido 10 anos após a morte do lendário artista pop já denuncia seu caráter mitológico de fantasia, ao deixar Neverland, as crianças supostamente abusadas sexualmente pelo artista se deparam com as consequências dos atos na vida adulta, precisando de alguma forma desabafar sobre isso, mesmo em um contexto em que todos ainda estão no parque de fanatismo reverenciador a Michael Jackson e dificilmente saem dessa visão por ser uma história retomada diversas vezes desde os anos 90, e várias vezes desmentida. Dan Redd é ciente disso e usará de todos os dispositivos possíveis para fazer com que a versão dele, que é o advogado de defesa das vítimas Wade Robson e James Safehuck, seja a mais verossímil e crível possível, plantando no mínimo dúvidas até nos fanáticos mais céticos.
Afinal, são 4 horas de duração, com diversos depoimentos detalhistas ao extremo, pegando todo o contorno de memórias entre Jackson e ambos os garotos, incluindo descrições explícitas dos atos que os envolveram, cartas de amor trocadas entre eles, áudios de conversas por telefone e muito mais, dentro de um contexto já provado em que o cantor dormia realmente junto às crianças e mantinha um contato sempre muito próximo com as famílias. Então, por mais que não haja provas concretas, os relatos são no mínimo convincentes por sentirmos todo o peso por trás do lado emocional das vítimas. Não parece encenado e principalmente é muito contra-argumentativo, as lacunas são muito bem preenchidas nos momentos mais questionáveis, sempre sobrepondo alguma atitude plenamente condizente de Michael ao tentar esconder tudo o que aconteceu, acarretando ainda mais no psicológico das vítimas e reforçando implicitamente que o cantor teoricamente sabia dos males de suas atitudes.
Se isso revela um lado totalmente unilateral da obra, faz sentido para que as acusações sejam contadas só agora depois de sua morte, principalmente depois do contexto do #metoo que revelou podres parecidos de diversos artistas que usavam de artifícios parecidos para se esconderem durante anos na indústria. O problema desse caráter mais claro é que em determinados momentos se torna cansativo por não ter material “vivo” o suficiente para preencher as lacunas dos relatos. A escolha é compreensível, mas ela perde força técnica quando se sobrepõe a planos aleatórios de drones repetitivos. Por mais que muitas vezes esses até ajudem na sugestão dentro da descrição do relato, eles são estendidos demais a ponto de tudo ficar muito inchado. É uma apelação válida para clamar a necessidade de um crédito pelo protesto, mas ele poderia ser mais hábil, e se fosse para se estender mais, que tivesse alguma pincelada mais profunda em contradições hierárquicas do que representou Michael Jackson.
Existe, principalmente na primeira parte, até alguma tentativa de contextualização da sua importância inigualável como músico, porém é usada apenas para ser quebrada e nunca é de fato explorada em nuances. Há letras de Michael que poderiam ser destrinchadas a nível de contradição com seus abusos, e principalmente, algumas de suas atitudes benéficas também deveriam, porque elas são o que enfraquecem de certo modo as denúncias na mente de quem admira o artista, apesar de tudo. Michael Jackson não é apenas o maior ícone pop de todos os tempos, como também a pessoa que mais doou e ajudou instituições de caridade a crianças na história. Então, como ele ainda assim era um pedófilo? Uma visão distorcida? O que o levava a cometer esses atos? Teria sido originado pela relação abusiva com o próprio pai?
Tendo em vista que o artista está morto, essa versão parece um documento de prova atrasado para um possível julgamento que nunca irá acontecer, então poderia entrar em um outro lado de tentar entender o que levou o artista a isso, já que o filme toma aqueles relatos como verdade, por que não assumir assim e proporcionar esse estudo, nem que seja também com um propósito direcional, aproveitando-se das milhões de informações disponíveis sobre o artista para tentar de fato desmistificá-lo, ou no mínimo, proporcionar um outro lado contraditório para que o próprio telespectador teça seus comentários. É justificado pelo ponto de vista que esse é mais um exercício de empatia para com as vítimas, mas documentalmente fora desse nicho tange a uma área investigativa muito conveniente para si, perdendo o impacto para quem não acredita.
Assim, o documentário só polariza mais o caso, a negação continua ou a crença de que realmente algo aconteceu permanece, não há meio-termo. Claro que é possível e bem provável que haja muitas mudanças de lado, principalmente numa época em que o senso de justiça fala alto em todos, o documentário até se aproveita disso como falado, porém ele não percebe que é dentro disso que surgem as brechas para possíveis defesas, até hoje totalmente plausíveis. O que importa é que ele de certo modo confirma uma nocividade, não necessariamente apenas do Michael, como do culto ao ídolo em geral, tanto de forma direta por quem o defende como de forma indireta por quem não percebe o perigo que se corre ao idolatrar qualquer ícone que seja, em qualquer contexto. Sobre o caso, talvez nunca saberemos a verdade, e mesmo que sim, o questionamento da possível separação entre pessoa e artista sempre existirá.
Deixando Neverland (Leaving Neverland | EUA-Reino Unido, 2019)
Direção: Dan Reed
Roteiro: Dan Reed
Elenco: Michael Jackson, Wade Robson, James Safechuck
Duração: 240 minutos