Creio que será difícil para qualquer pessoa que deseje ler ou escrever sobre o Decamerão (do grego antigo: deca, “dez” + hemeron, “dias” ou “jornadas“), em anos próximos à pandemia de COVID, não fazer uma porção de comparações diretas com aquilo que Giovanni Boccaccio explorou neste seu icônico livro. Escrito entre 1348 e 1353, a obra (subtitulada Príncipe Galeotto) é uma reunião de 100 contos/novelas trazidos à luz num espaço de 10 dias por um grupo de 7 moças e 3 rapazes que procuram fugir da peste negra, abrigando-se num castelo próximo à cidade de Florença.
Narrativa medieval de extrema importância e influência na literatura Ocidental, o Decamerão tem uma forma em moldura, tipo de narrativa onde o autor (que começa falando de sua compaixão pelos aflitos) insere histórias menores numa grande história inicial. Estabelecido o primeiro cenário, Boccaccio direciona o nosso olhar para as muitas aventuras que os dez jovens contarão nesse período de “quarentena”, sempre começando e terminando as jornadas de cada um com algumas observações. No Proêmio da obra, o autor nos apresenta os temas centrais e nos dá o contexto social, urbano e sanitário do momento em que os episódios de passam. Ao falar especificamente da peste negra, o autor informa coisas que nos permitem fazer comparações com a situação pandêmica de 2020 – 2022 (?), tornando a ambientação bem mais fácil e interessante para um leitor que tenha passado por algo mais ou menos similar:
Digo, pois, que já havíamos chegado ao ano profícuo da Encarnação do Filho de Deus, de 1348, quando, na egrégia cidade de Florença, mais bela do que qualquer outra cidade itálica, sobreveio a mortífera pestilência. […] Naquela cidade de Florença, cuidado algum valeu, nem importou qualquer providência humana. A praga, quase no início da primavera do ano referido, começou, a despeito de tudo, a mostrar, horrivelmente, e de modo miraculoso, os seus efeitos. […] Muitos conselhos se distribuíram para a conservação do bom estado sanitário.
A primeira coisa que deve-se levar em consideração é a classe social e a religião do grupo de protagonistas. Eles fazem parte da elite florentina, portanto, podem se dar o luxo de um afastamento seguro do centro urbano, onde a contaminação e a mortandade está em toda a parte, e passar uma temporada tranquila no campo, com acesso a boa comida, bons vinhos, roupinhas limpas e casa isolada, onde podem criar suas próprias diversões. É, em tudo, um “distanciamento social“, com a diferença de que nenhum deles precisa fazer home office. Boccaccio une a preocupação e o medo dessas pessoas com a situação de tempo livre que possuem, abrindo as portas da narrativa e fazendo de O Decamerão um livro essencialmente metalinguístico. A palavra é o instrumento acessível a todos aqui, e é através da boca de cada um que as muitas faces, atos e pensamentos dos personagens mais plurais ganharão vida.
O tempo inteiro também somos lembrados de que esses são jovens católicos de boa família, ou seja, a companhia que fazem uns aos outros, as liberdades que se permitem e as histórias que compartilham avançam até uma determinada linha, sempre mantendo-se na expectativa da retidão do comportamento e do espírito medievais. Todavia, nos depararemos com contos e observações que se afastam bastante daquelas pessoas amedrontadas e tímidas que encontramos pela primeira vez na igreja de Santa Maria Novella. Com uma imensa ironia, Boccaccio critica preceitos doutrinários da igreja, cutuca a organização social dos reinos da Península Itália, confronta na base do cinismo a burguesia e a nobreza mediterrâneas e os costumes das populações urbanas de muita e de pouca posse. É justamente por esse caráter irônico, sombriamente bem humorado e até mesmo cínico que o leitor precisa tomar cuidado ao trazer para o pensamento contemporâneo certos apontamentos típicos do século XIV.
Isso quer dizer que não podemos analisar trechos da obra como imensamente problemáticos em sua forma de expor os papéis de gênero, as relações entre o indivíduo e a igreja, as relações sociais e a legitimação de certo grupo de pessoas no poder? Não, não é isso que eu quero dizer. Ocorre que para escritores que zombam de sua realidade, dos hábitos à forma de pensar, é necessário um cuidado na análise, não apenas identificando o problema de certas passagens para a sociedade contemporânea, mas também procurando alocar esse problema a uma lógica estilística e de contexto diegético da própria obra. Nossa reação imediata é rejeitar e balançar negativamente a cabeça após certas frases, mas se observarmos como o autor trata, por exemplo, as mulheres desse grupo, veremos que sua intenção aqui tinha muito mais camadas do que aparenta.
Após a chegada de Pampineia, Fiammetta, Filomena, Emília, Laurinha, Neifile, Elisa (as sete mulheres) e Pânfilo, Filóstrato e Dioneio (os três homens) ao palácio de campo, surge a ideia de que todos ali poderiam sentar-se para contar histórias. Cada dia que passassem no palácio seria “governado por um rei ou rainha“, ou seja, por uma pessoa do grupo, e esta pessoa encabeçaria a ordenação da casa e o ritmo com que deveria se dar o divertimento e o aproveitamento do dia por todos. É nesse contexto de destaque individual que surge a ideia de “jornada”, sendo Pampineia a pessoa que sugere, logo na primeira tarde, que em vez de praticarem jogos e se estafarem ao Sol, procurassem um lugar sombreado para sentar e… contar histórias. Como rainha da primeira jornada, Pampineia estabelece que as tramas deveriam ser de tema livre, cabendo uma narração da preferência de cada um. E dessa forma começa, de verdade, o primeiro conjunto de tramas do Decamerão.
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Decamerão I, 1: Narrativa de Pânfilo
Primeira Novela: Sr. Ciappelletto
O Sr. Ciappelletto, com uma falsa confissão, engana um santo frade; e morre. Tendo sido péssimo homem na vida, é reputado santo na morte, passando a ser chamado São Ciappelletto.
Aqui temos um interessantíssimo conto que mistura a baixeza moral e ética de um indivíduo (o tal Sr. Ciapelletto do título, cujo nome verdadeiro é Cepparello) com a ingenuidade eclesiástica e a facilidade com que a massa adere aos títulos de retidão e benfeitorias de uma determinada pessoa, elevando-a ao posto de ídolo quando não mereciam sequer um olhar de consideração. Em termos de fonte histórica, eu li algumas indicações de que Boccaccio tenha se inspirado em um capítulo de A Vida de São Martinho, escrita por Sulpicius Severus no final dos anos 300, mas não encontrei nenhuma confirmação disso. Procurei o livro e encontrei um resumo do capítulo 8, chamado O Santo, mas no resumo não havia nenhuma indicação de uma história que fosse parecida com a que temos nessa novela de Boccaccio.
O protagonista desta narrativa é um homem infame e perverso que viaja a trabalho para a Borgonha, onde ninguém o conhece. Nessa viagem, a serviço de Musciatto Franzesi, ele acaba adoecendo mortalmente e, o que se segue, é uma profusão de mentiras confessionais que impressionam muitíssimo a um frade, elevando o moribundo a um posto de pureza de espírito que o tal indivíduo nunca teve. O autor está claramente zombando das práticas da Igreja Católica de sua época, criticando a “canonização pelo povo” e deixando claro que a massa não está preocupada em conhecer seus ídolos, em buscar a verdade sobre o comportamento daqueles que admiram ou procurar entender o por que essa pessoa chegou a tal ponto de prestígio. Me fez lembrar a reflexão do Surfista Prateado em Parábola, uma fantástica história sobre a admiração andando de mãos dadas com o fanatismo, gerando uma paranoica, violenta e zumbificada adoração.
O autor não esconde a grande diferença entre as práticas mercantis e as regras de comportamento que a igreja cobra, regras essas que todo o estilo de vida dos “grandes homens do comércio” não comporta, mas que esses, muitas vezes, fingem praticar. O ridículo da situação, inclusive, é justamente o fato de o tal comerciante saber de todo o rito religioso, a ponto de armar um teatro onde se opõem o comportamento vulgar, a busca de prazeres, o cometimento de crimes e a projeção que esse indivíduo faz de alguém que se afastou de todos esses pecados. A mesma projeção de “uma boa pessoa” é feita pelo frade que ouve a confissão e que é vendida como grande lição para a população local, que ansiosa por um espelho de ordem e retidão a seguir, exaltam, sem saber, a figura “do pior homem que já existiu“.
A violação do sacramento é o pecado final deste personagem, que em termos de jurar falso, já era um verdadeiro profissional (notem o tom cronista, contemporâneo, com que o autor aborda a questão). Mas tanto a chatíssima e ‘enrolona‘ introdução quanto a mediana finalização da narrativa de Pânfilo nos convidam a pensar no ponto de vista divino para toda a questão. Embora esteja mais preocupado em mostrar a fraqueza do homem, o lado ruim de seus pensamentos e atitudes, o conto considera a possibilidade de a confissão ou o arrependimento dessa terrível pessoa ser verdadeira, uma coisa honesta. E nesse último minuto, é também possível, mediante a doutrina cristã, que tal pessoa receba o perdão divino de todos os seus pecados, obtendo, assim, a salvação. A questão que fica é: arrependendo-se de verdade ou não, a santidade de Ciappelletto pode tornar-se legítima, diante da fé das pessoas inocentes que o adoram?
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Decamerão I, 2: Narrativa de Neifile
Segunda Novela: O Judeu Abraão
O judeu Abraão, instigado por Giannotto di Civigni, vai à corte de Roma. Vendo as malvadezas dos clérigos, regressa a Paris, onde se torna cristão.
Depois de uma primeira novela muitíssimo interessante e que nos permite uma análise ampla, histórica, social e tematicamente plural dos hábitos de vida de um personagem, chegamos a uma trama que realmente não tem graça e estampa toda a cara de uma aventura com mentalidade cristã medieval, no sentido negativo da definição. Considerando esse ponto, porém, o leitor compreende com muita facilidade a abordagem de Boccaccio para a as relações religiosas e para os dogmas específicos da igreja — valendo dizer que são coisas que permanecem no discurso de pecado da igreja até os dias de hoje. Frases como “pecavam desonestissimamente por luxúria; pecavam não somente por luxúria natural, mas também por atos de sodomia […]” marcam bem esse território das atitudes pessoais consideradas infames pela igreja, e, nesse caso, somam-se a outros problemas verdadeiramente sérios como a corrupção.
O fato é que ler uma historinha onde um cristão tenta convencer, amigável mas insistentemente, um judeu à fé de Cristo, dizendo com todas as letras que o Cristianismo é a única religião verdadeira, acaba diminuindo muito do que a trama poderia ter de louvável. É o tipo de definição estranha que historicamente faz jus à crônica medieval, mas isso não significa que funcione bem na literatura, como, de fato, não funciona. E isso ocorre porque o texto é só isso mesmo. O comentário sobre a corrupção da igreja é interessante, tem peso, mas é localizado e não tem importância para a narrativa. O que importa nessa novela é mesmo a elevação do Cristianismo como religião e a trajetória de conversão de um judeu que viu tanto pecado dentro da cúpula católica que decidiu… por algum motivo… se converter ao Cristianismo. A indicação de revelação espiritual sobre a sobrevivência e crescimento da religião cristã é ironicamente profética. Pena que não é algo que sirva à história de modo a melhorar suas camadas, sentido e reflexão.
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Decamerão I, 3: Narrativa de Filomena
Terceira Novela: O Judeu Melquisedeque
O judeu Melquisedeque evita, com uma narrativa de três anéis, um enorme perigo que lhe fora preparado por Saladino.
Eis aqui um exemplo de história que está igualmente ancorada na religião, seguindo elementos muito conhecidos do pensamento medieval, mas que tem um resultado verdadeiramente positivo. Nessa terceira narrativa, dita por Filomena, conhecemos os perrengues financeiros que Saladino (sim, o chefe militar curdo muçulmano que se tornou sultão do Egito e da Síria e liderou a oposição islâmica aos cruzados europeus no Levante, reconquistado Jerusalém dos cristãos em 1187), que tenta encontrar um meio não violento para pedir dinheiro emprestado ao rico judeu Melquisedeque.
O valor religioso aqui é bastante importante, mas diferente da história anterior, ele não suplanta os personagens e nem interfere na narrativa propriamente dita. Há uma semelhança cronista e antiga em evidência, como sendo uma história narrada de geração para geração, ganhando uma atmosfera ainda mais interessante, me lembrando em certos momentos, alguns caminhos tomados pelas narrativas d’As Mil e Uma Noites — embora seja apenas uma lembrança comparativa do meu ponto de vista, como leitor, não que exista algum tipo de relação direta e proposital feita por Boccaccio entre as duas tramas, que fique bem claro. Essa visão dá um sabor diferente à novela, destacando a inteligência de um homem, a relação dele com esse líder poderoso (notem que o conto fala de fraqueza, mesmo para poderosos… nesse caso, uma fraqueza financeira) e como as coisas se ajustaram após a inteligente história dos anéis deixados de herança de geração para geração, como um símbolo das três maiores religiões monoteístas. Uma boa e inteligente história, com certeza.
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Decamerão I, 4: Narrativa de Dioneio
Quarta Novela: O Monge Pecador
Um monge que caíra em pecado e merecedor de punição muito severa, escapa dessa pena acusando o seu abade de culpa semelhante.
E aqui chegamos a uma “aventura sacana“… uma dentre as muitas que constam nas novelas do Decamerão. Nesta quarta parte da Primeira Jornada, Dioneio segue um pouco a trilha das duas narradoras antes dele, ou seja, mantém o foco dentro do espectro religioso, mas agora falando do pecado da luxúria, cometido não por um, mas por dois monges de diferentes idades. Assim como nos outros relatos, existe uma clara marca das regras da igreja permeando as ações dos personagens: o autor se refere à questão como sendo problemática, fala dos impactos disso para a fé, mas diferente daquilo que tivemos em O Judeu Abraão, o elemento doutrinário ou puramente relacionado à fé não suplanta a história e aparece na narrativa de maneira bem dosada, guiando o pensamento dos monges pecadores e servindo, inclusive, como fator de suspense para o que poderia acontecer com um deles.
A história é simples, mas bastante divertida. Um jovem monge vê uma jovem mulher pela primeira vez e acaba indo com ela para o quarto, no monastério, onde acaba fazendo sexo. O monge responsável pelo local ouve o barulho que os jovens estavam fazendo e descobre o ato libidinoso. A forma como ele escolhe se aproximar do jovem monge pecador, para repreendê-lo, e o que acontece depois com o velho religioso acaba mudando todo o andamento e significado da história, adicionado aquela atmosfera “sacana” que eu citei no início e criando um bom efeito cômico, além da trazer, nas entrelinhas, uma observação crítica do autor para o comportamento desregrado dos personagens, falando de um arrependimento que não é um arrependimento de verdade, visto o que temos exposto no final da trama. O que continua valendo, em toda essa situação, é a fantástica frase que um dos monges pensa num ponto da narrativa: “pecado oculto é pecado meio perdoado“.
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Decamerão I, 5: Narrativa de Fiammetta
Quinta Novela: A Marquesa de Monferrato
Com um banquete de galinhas e certas palavrinhas amáveis, a Marquesa de Monferrato consegue reprimir o amor do rei da França.
Uma novela com um significado simbólico/metafórico que parece mais interessante antes de ser completamente revelado, do que depois. Aqui, depois de o autor falar que as mulheres ficaram ruborizadas com o conto sexual anterior, vemos Fiammetta assumir a narrativa e contar ela mesma uma aventura de cunho libidinoso, mas menos explícito e sacana que a de seu amigo Dioneio. Nessa história, uma Marquesa muito distinta, esposa de um Marquês igualmente muito distinto, é desejada pelo rei da França, que faz de tudo para se colocar no caminho da mulher e conseguir levá-la para cama.
Não é uma história que nos deixa imensamente presos, apesar de criar um pouco de suspense em relação ao que pode acontecer no banquete e como a mulher responderá aos desejos carnais do rei. A coisa, porém, se resolve no banquete que a Marquesa prepara, dando uma resposta espirituosa para o monarca, que apaga o fogo de sua paixão e decide deixar o local, reconhecendo também a inteligência de seu crush temporário. Não sei se entendi muito bem o elemento metafórico que o autor quis indicar com o tal banquete de galinhas, mas o sentido final, de “aplicar uma lição no monarca“, é perfeitamente compreendido. Não é uma das melhores tramas dessa jornada, mas está acima da média, com certeza.
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Decamerão I, 6: Narrativa de Emília
Sexta Novela: Um Homem Digno
Um homem digno confunde, pela sua boa resposta, a perversa hipocrisia dos religiosos.
Quando eu terminei essa história, fiquei um pouco às voltas com a ideia de crítica que Boccaccio traz. Mais uma vez estamos diante de um cenário religioso e existe uma crítica sendo feita — de novo à corrupção por parte de pessoas influentes dentro da cúria. O tal “homem digno” do qual a trama se refere é alguém com bastante dinheiro que faz um comentário que desperta a avareza de um religioso influente. O tal homem diz que tem um vinho tão antigo e tão bom que “até Jesus beberia dele. Isso é o bastante para que um processo de investigação seja aberto contra o cidadão, que precisa “molhar a mão” do clérigo responsável pela investigação e ainda comparecer todos os dias, depois da missa, para algumas conversas.
A história em si tem uma boa ideia de “tiração de sarro” misturada com inocência e um sentimento de vingança por parte do homem aterrorizado pelo religioso. Através do poder que tem, esse clérigo coloca medo no homem (uma investigação de heresia, por exemplo, na Idade Média, era algo a se temer) e tirou-lhe dinheiro, mas se esqueceu de que o tal homem tinha um bom poder de observação e isso poderia ser um problema… como de fato foi. A questão é que eu achei o exemplo cínico bastante simples e meio cifrado, um pouco parecido com o banquete de galinhas da novela anterior. Claro que aqui a coisa está bem mais límpida, mas ainda assim, num nível simbólico que acaba não tendo hoje o peso que talvez deveria ter para os leitores da época em que a obra foi escrita.
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Decamerão I, 7: Narrativa de Filóstrato
Sétima Novela: Bergamino e o Sr. Cane della Scala
Narrando uma novela de Primasso e do Abade de Cligni, Bergamino critica com honestidade uma nova avareza surgida no Senhor Cane della Scala.
A parábola, a metáfora e todas as histórias que servem como uma ponte de intenções entre o que se conta e aquilo que se quer atingir são estratégias de discurso (e literárias) bastante antigas e bastante famosas. Nesta Sétima Novela, Boccaccio utiliza desse modelo de narrativa para fazer um indivíduo que trabalhava na Corte (alguém ligado ao entretenimento, por exemplo), mostrar ao seu péssimo hospedeiro, o tal Sr. Cane della Scala, como ele se sentia, o que ele desejava, e como ele via o comportamento desse homem rico para com alguém pobre que precisava de ajuda.
É uma história interessante pela forma como o autor explora (a narrativa, dentro da narrativa, dentro da narrativa) e também pelo conteúdo que traz, falando um pouco dos caprichos de um nobre que convoca uma festa, mas acaba pensando melhor e mando todo mundo embora antes do previsto. Não se trata de um texto rico de significados ou com muito apuro narrativo. É uma história simples, com bom sentido geral, mas que não ultrapassa nenhuma linha que valha alguns aplausos.
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Decamerão I, 8: Narrativa de Laurinha
Oitava Novela: Guilherme Borsiere e o Sr. Ermino dos Grimaldi
Com nobres palavras, Guilherme Borsiere fere a avareza do Senhor Ermino dos Grimaldi.
Moralista até demais para o seu próprio gosto, esta oitava novela fala de Ermino de Grimaldi, que era um riquíssimo nobre de Gênova. Os relatos, porém, apontavam este homem como uma pessoa muito mesquinha e gananciosa, que chegava a passar fome para não ter que gastar dinheiro (mas existe aqui uma contradição, porque a segunda parte do conto fala da casa muito luxuosa que ele mandou construir, e a narrativa de Laurinha não dá nenhum tipo de contexto para esse gasto grandioso do conhecido avarento e pão-duro). Muito bem; um dia, Guilherme Borsiere, um cortesão conhecido por ajudar a manter a paz e a amizade entre as pessoas (mas que curiosamente Dante cita como estando no Inferno), visita a cidade e acaba se encontrando com Ermino. É nesse encontro que a grande lição de moral é dada no avarento, quando o nobre pede a ele que pinte “cortesia” na parede do palacete.
Em termos de contexto histórico, não temos nenhuma fonte conhecida para este conto, embora o tal Guilherme Borsiere realmente tenha existido. Como outras narrativas dessa Primeira Jornada, a oitava procura fazer paralelos do tempo presente com o passado, e Laurinha até se perde, em determinado momento, nos louvores aos valores de outrora, dizendo que “hoje ninguém tem virtudes“. É um conto bem ruinzinho, sem nada que verdadeiramente chame a nossa atenção. Num primeiro momento, imaginei que haveria algum tipo de embate entre os dois homens de alinhamento moral tão diferentes, mas isso não aconteceu. Temos moralismo pelo moralismo, e é nisso que a trama se resume, ao fim de tudo.
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Decamerão I, 9: Narrativa de Elisa
Nona Novela: O Rei de Chipre e a Mulher Gasconha
O rei de Chipre, ao ver-se melindrado por uma mulher Gasconha, transforma-se, de mau que era, em um homem de real valor.
História muito curta e muito fraca sobre uma mulher nobre voltando de uma peregrinação ao túmulo de Cristo (Godofredo de Bulhão, líder da 1ª Cruzada, também é citado aqui) e que foi severamente insultada por alguns bandidos na ilha de Chipre. A nobre, incapaz de suportar o insulto, tentou levar o caso ao rei Guido di Rousignano, mas quando soube que esse rei não tinha um bom alinhamento ético-moral, resolveu abordar a situação por um outro ponto de vista, um desafio disfarçado de submissão. O que ela traz ao final é uma fala confusa sobre suportar insultos, jogando na cara do monarca o verdadeiro motivo de sua vergonha frente às injustiças. O final resolve todo o enredo de maneira abrupta e sem graça, não tendo um único momento de desenvolvimento de alguma coisa. Definitivamente, a pior história de toda essa jornada.
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Decamerão I, 10: Narrativa de Pampineia
Décima Novela: Mestre Alberto de Bolonha
O Professor Alberto, de Bolonha, faz, com elegância, envergonhar-se a mulher que pretendeu vexá-lo por ele se haver apaixonado por ela mesma.
Alberto é um professor idoso da cidade de Bolonha. Certo dia, ao colocar os olhos em uma mulher viúva chamada Margarida Ghisolieri, ele se apaixona, e passa a cortejar a mulher, passando constantemente perto de sua casa, chamando sua atenção. Por este motivo, as esposas locais zombam de Alberto. Nesse ponto da história — e falarei a partir desse momento mesmo, porque a introdução é de uma chatice tremenda, com mais indicações comportamentais que irritam até o leitor mais paciente — a Rainha Pampineia dá um interessante contexto, colocando na fala do personagem as surpresas que o amor traz e como a idade e a experiência podem se mostrar muito mais interessantes do que o amor de almas jovens, impetuosas, sempre muito bem vistas pelos olhos alheios, mas que nada ou pouca coisa (na maioria das vezes, pelo menos) podem oferecer, porque ainda não estão maduras. A ideia central dessa derradeira novela é muito boa, assim como a lição que ela traz — exceção à maneira como é finalizada, com um caminho narrativo confuso, como já vimos em outros contos da jornada.
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Despedida
Neste bloco da história, a rainha Pampineia resolve nomear a sua sucessora. A jovem indicada para substituí-la no dia seguinte é Filomena, que já toma algumas providências em relação ao que deveria ser feito a seguir. Uma das coisas que ela estabelece é o tema central da Segunda Jornada falaria “de quem, acossado por muitos contratempos, chegou a um fim tão feliz que lhe excedeu as esperanças“. Este deveria ser o tema das histórias durante o segundo reinado. E após uma cantiga, a reunião de “contações” se encerra. É um bom bloco de ligação, pelo menos naquilo que propõe. Ele é capaz de colocar um ponto final em toda uma atmosfera que existia até então, e abrir as portas para um novo tipo de abordagem. Não se trata de nada absurdo, mas é um ponto coerente do texto, que dá sentido, agora na conclusão, para tudo o que o autor nos apresentou quando essa brincadeira toda começou.
Decamerão – Pampineia: Primeira Jornada (Decameron/Decamerone: Prima Giornata) — Itália, 1348 a 1353
Autor: Giovanni Boccaccio
No Brasil: Nova Fronteira – 2º edição (10 agosto 2018)
Tradução: Raul de Polillo
140 páginas