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Crítica | Decálogo 9 – Não Desejarás a Mulher do Próximo

por Luiz Santiago
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A relação deste Decálogo 9, Não Desejarás a Mulher do Próximo, com o cinema de Alfred Hitchcock, é gigantesca. Krzysztof Kieslowski formulou aqui toda uma base que ostenta a cobiça de um homem impotente pela sua própria mulher (o diálogo com Não Roubarás, onde uma mãe rouba a própria filha, não é gratuito) e coloca em cena inúmeros jogos de poder, amor e ódio que deixam o espectador tenso, aguardando uma tragédia que não vem nem na hora e nem do modo em que se espera. Logo fica claro que o engano e a ansiedade vão permear toda a discussão sobre o mandamento em questão, e isso não só em termos de conteúdo da trama, mas também nas características técnicas deste Decálogo 9.

Observe como a montagem de Ewa Smal ganha um ritmo bem diferente do que ela aplicara nos oito capítulos anteriores da série. Algo um pouco mais intenso havia sido feito em Não Cometerás Adultério / Não Amarás, mas nada como o que ela realiza aqui. Primeiro, temos uma brincadeira de campo-contracampo entre cenas filmadas em lugares completamente diferentes, dando a impressão de um diálogo que na verdade não existe, ou pelo menos não existe per si, mas no todo, tais cenas se relacionam e se completam dramaticamente. Depois, à medida que essas “pontas soltas” do início vão se ajustando e a trama começa a ficar mais fluída – e ao mesmo tempo mais misteriosa – vemos o mandamento ser explorado da forma menos óbvia possível.

O desejo, mais uma vez, é o objeto que aprisiona o homem e, mais uma vez, torna-se a sua perdição. O pior de tudo é que esse desejo aqui é de um homem pela sua própria esposa. E não se enganem com a presença do jovem amante de Hanka, pois ele é um genuíno McGuffin, cuja função é despertar o ciúme do esposo e trazer à tona os já citados elementos hitchcockianos do episódio.

As cenas do telefone nos lembram Disque M Para Matar; a cena do esqui traz momentos do início de O Homem Que Sabia Demais (1934) e Quando Fala o Coração; e o restante do episódio expõe referências de Marnie (com a inversão do “problema do desejo”) e Suspeita. Já o aspecto do engano, como pano de fundo, pode ser visto de duas formas. A primeira, do ponto de vista dos protagonistas, que tentam enganar a si mesmos ou enganar um ao outro sobre o que sentem ou o que fazem; e a segunda, do próprio diretor sobre os elementos postos na tela.

Um dos exemplos a isso é a citação do compositor Van den Budenmayer, que na verdade, não existe. Ele é uma espécie de alter ego de Zbigniew Preisner (compositor de toda a trilha sonora do Decálogo), que combinou com Kieslowski a criação de um músico para ser melhor explorado, já que Mahler, também citado no roteiro, tornava-se um problema, pois o orçamento de gravação não comportava o pagamento de uma grande orquestra, como exigia a obra pretendida. É também curioso vermos como essa brincadeira cresceu e apareceu cheia de detalhes nos filmes futuros de Kieslowski como A Liberdade é Azul, A Fraternidade é Vermelha e A Dupla Vida de Véronique.

Com a desfaçatez em alta – um comportamento que se aplica muito bem ao pecado do ‘desejo à mulher do próximo’ –, o roteiro problematiza não só o mandamento em si, mas a forma como ele se resolve. Se em Não Roubarás, o episódio mais parecido com este em termos de motivação, o desfecho e aplicação do castigo divino foi ínfimo e reticente, aqui, o resultado flerta com a morte, o já conhecido “salário do pecado”.

Se antes unidos pelo desejo e depois quase separados pela mentira (e pelo “desejo indevido” do homem pela sua própria esposa, sem que pudesse tê-la sexualmente), é na dor mútua que o casal volta a se unir, quase com um chamado fraterno, onde ambos, perdidos, se entregam ao abismo em cujo final está o tema do Decálogo 1: Amarás a Deus Sobre Todas as Coisas. Se não podem ou não conseguem se separar, ou de fato se amar, os dois se entregam à sina da “santidade do casamento”, mantendo-o a despeito da infelicidade mútua, contentando-se com a vida um do outro e, nas entrelinhas, amando apenas a uma única pessoa externa a eles, quando muito.

Dentre as muitas críticas que Kieslowski fez ao Decálogo, a que está presente neste episodio é uma das mais contundentes e interessantes, muito embora haja uma tendência à felicidade ao final, mesmo que seja a “felicidade fabricada”, comum a muitos casais que não mais se suportam, mas suportam menos ainda a ideia de separação, então criam um mundo onde pouco falam e precisam mostrar ao mundo (o tempo inteiro) que são o casal ideal, feliz, exemplar e corretos aos olhos de Deus. Dá pra imaginar os círculos do Decálogo e as múltiplas punições se repetindo aí, ad infinitum?

Decálogo 9 – Não Desejarás a Mulher do Próximo (Dekalog, dziewiec) — Polônia, 1990
Direção: Krzysztof Kieslowski
Roteiro: Krzysztof Piesiewicz, Krzysztof Kieslowski
Elenco: Ewa Blaszczyk, Piotr Machalica, Artur Barcis, Jan Jankowski, Jolanta Pietek-Górecka, Katarzyna Piwowarczyk, Jerzy Trela
Duração: 58 min.

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