- Leiam, aqui, as críticas de todas as temporadas da série. Há spoilers somente da série, não do filme.
Não sei se Deadwood: O Filme é mesmo um encerramento tardio da espetacular série de David Milch injusta e bruscamente cancelada pela HBO ou se ele é, na verdade, uma acridoce lembrança do que poderia ter sido sob a forma de uma nostálgica reunião do elenco quase 13 anos depois. Muita coisa aconteceu nesse meio tempo, com a ascensão de novos players no mercado de séries e de novas formas de se consumir conteúdo audiovisual, além de nomes então desconhecidos do elenco terem ganhado destaque ao longo dos anos, mas Deadwood continua sendo um marco televisivo que, pelo menos em seu gênero, dificilmente será batido por trazer um grau de realismo histórico impressionante em meio a um narrativa complexa, rebuscada, repleta de significados e um elenco do mais alto gabarito.
Como um retorno celebratório à cidade mineira de Deadwood usando como estopim a admissão da Dakota do Sul ao EUA em novembro de 1899, o filme é um triunfo capaz de trazer lágrimas aos olhos de quem acompanhou a série no começo dos anos 2000. Só o impressionante trabalho de reconstrução dos cenários e a hercúlea empreitada de se trazer todo o elenco de volta, mesmo que vários em papeis insignificantes dado o pouco tempo de duração que exigiu escolhas, o filme já merece aplausos. Some-se a isso que David Milch, agora lutando contra o diagnóstico de Alzheimer, lutou tanto que finalmente conseguiu fazer pelo menos um semblante do que planejava originalmente, entregando aos fãs algum tipo de fechamento, mesmo que muito claramente não seja o ideal. No entanto, como filme em si, ele revela problemas que provavelmente são resultantes do salto temporal e da impossibilidade de se introduzir elementos inteiramente novos, ainda que o saldo final seja mais do que positivo.
Com a única ausência de monta sendo a de Powers Boothe como Cy Tolliver, dono do saloon Bella Union, já que o autor infelizmente faleceu em 2017 vítima de câncer no pâncreas, Milch não perde tempo em reapresentar todo o sensacional elenco da série revivendo seus personagens sem grandes evoluções, diga-se de passagem, começando com Calamity Jane (Robin Weigert) retornando para visitar sua amada Joanie Stubbs (Kim Dickens) e com a chegada de trem – o que já estabelece de imediato a evolução do ex-acampamento, agora cidade – de Alma Garret (Molly Parker) e de sua filha adotiva Sofia (Lily Keene substituindo Bree Seanna Wall que não seguiu carreira como atriz) que são recebidas por um bem envelhecido Charlie Utter (Dayton Callie). Na sucessão bastante apressada, vemos o xerife Seth Bullock (Timothy Olyphant), agora com três filhos com sua esposa Martha (Anna Gunn), Al Swearengen (Ian McShane) ainda desbocado, mas fisicamente combalido e doente e Sol Star (John Hawkes) vivendo com Trixie (Paula Malcomson), esta bem grávida. Todos os demais pipocam de tempos em tempos (mais para o final há até uma ponta não creditada do tipo piscou perdeu de Garret Dillahunt vivendo seu terceiro personagem!), mas têm reduzida participação na fita e estão ali muito mais pelo valor da comemoração que é o filme do que como instrumentos narrativos propriamente ditos.
A história em si gira em torno, mais uma vez, da presença disruptiva de George Hearst (Gerald McRaney), agora senador, mas tão ou mais inescrupuloso que antes. Ele deseja adquirir as terras de Charlie Utter de qualquer jeito para permitir a passagem de postes de energia elétrica pela região, mais uma vez alegorizando que o progresso não pode ser parado e acontecerá a qualquer preço. Paralelamente, Trixie, que atentara contra a vida do milionário, em mais um arroubo impensado de raiva, revela-se viva para Hearst que, claro, passa a querer sua cabeça novamente, já que o engodo criado por Al no final da última temporada em que ele matara outra prostituta para se fazer passar por sua favorita, cai por terra.
Pode-se perceber, muito claramente, que Milch não inventa. Ao contrário, ele joga seguro e praticamente refaz – ou atualiza – os grandes conflitos que marcaram a série, notadamente a derradeira temporada, fazendo o espectador caminhar por estradas já desbravadas, o que retira um pouco da novidade da película. Além disso, o constante uso de breves flashbacks para paralelizar as ocorrências passadas com as presentes, apesar de compreensíveis, pois dificilmente alguém conferirá novamente a série para se lembrar de tudo, cansam um pouco por serem repetidas por mais vezes do que o estritamente necessário, especialmente a dolorosa “troca” de prostitutas que salvou a vida de Trixie.
Por outro lado, Milch acerta ao focar principalmente nos eternos aliados hesitantes Seth Bullock e Al Swearengen. Eles continuam praticamente os mesmos que eram 10 anos antes, o primeiro capaz de estouros de raiva fumegante e, o segundo, sempre o estrategista debochado. Mas é possível ver, entre eles, uma cumplicidade maior, uma relação que ultrapassou aquele antagonismo visceral que eles tinham e chegou a algo tolerável, até mesmo apreciado por eles. Se Olyphant continua muito bem em seu papel, desta vez com um pouco mais de cabelo branco e um bigodão mais parecido com o de sua contrapartida real, quem mastiga o cenário do começo ao fim é McShane com uma versão tão realisticamente fragilizada de seu inesquecível Al Swearengen que chega a ser impossível não sentir pena do “vilão”. Essa é, arrisco dizer, a grande chance do ator levar para casa outro Globo de Ouro pelo mesmo papel.
A consagrada direção de arte da série ganha o que poderia ser classificado como um bom – não sensacional – emulador para o telefilme. Os cenários clássicos foram reconstruídos em detalhes, como os saloons The Gem, Bella Union, o Grand Central Hotel, além de outros que são mais vistos por fora do que por dentro e os figurinos são, novamente, imersivos e detalhados. Mas perdeu-se algo nessa transição. Talvez seja a velocidade que o roteiro precisa impingir à história, forçando que a direção de Daniel Minahan (veterano da série) empregue pouco tempo para cada locação, o que desfaz um pouco da mística. Ou talvez seja um verniz de modernidade artificial que parece ter sido colocado por cima de cada parede, cada fachada e até mesmo na rua única de terra e esterco. Tudo parece substancialmente mais limpo, mais organizado e mais “bonito” que o que vimos na série original, passando a impressão daqueles faroestes clássicos em que o máximo que se vê de sujeira é uma poeira aqui ou ali.
Entendo perfeitamente que pode também haver uma razão prática para essa escolha, que é, na verdade, muito óbvia: a civilização chegou a Deadwood nesses 10 anos elipsados. Sim, eu poderia ficar tranquilo com essa explicação se ela não parecesse fácil e conveniente demais. Considerando a acuidade histórica que Milch sempre inseriu em sua criação, temos que lembrar que, em 1889, Deadwood ainda era relativamente selvagem, literalmente no meio do nada com coisa nenhuma e, mesmo com a civilização inexoravelmente batendo à porta, a cidade ainda era uma fronteira largamente inexplorada e ainda afastada dos centros de poder (aliás, a cidade nunca – nem até hoje – esteve próxima de centro de poder algum). Portanto, era de se esperar evolução e desenvolvimento e isso já é muito bem marcado pela chegada da eletricidade e da ferrovia, mas a impressão geral de embelezamento da localidade pareceu-me deslocada, ainda que a equipe de produção esteja mais do que de parabéns por ter quase que integralmente reconstruído a visão de David Milch somente para o filme usando um mínimo de CGI discreto para completar algumas construções e para criar as tomadas em planos gerais do diminuto vale nos ricos Black Hills.
Acompanhando essa pegada um pouco mais “higienizada” de Deadwood, a fotografia do ótimo David Klein (conhecido por seu trabalho em True Blood e Homeland) trabalha com muita iluminação, tanto natural quanto artificial, para talvez reiterar a mensagem de que os novos tempos realmente chegaram e não tem mais jeito. Quase tudo é mais claro, ainda que ele tome cuidado para manter a paleta de cores em tons de marrom ao longo de toda a projeção, enxertando algumas cores vivas em determinados momentos – um vestido, uma decoração de interior e assim por diante – para quebrar o padrão e apontar para o futuro. No entanto, o diretor de fotografia faz um excelente trabalho de contraluz nas sequências de Trixie no quarto de hotel (mais precisamente no Bullock and Star Hotel que existe até hoje apenas como Bullock Hotel, aliás!), passando um ar angelical para a ex-prostituta e para o relacionamento dela com Sol, além de ótimas sequências escuras – mas não sombrias – em tomadas internas, notadamente no The Gem como na imagem que elegi para ilustrar a presente crítica. Ou seja, a “velha” Deadwood ainda está lá, mas gradativamente abrindo espaço para o progresso, como o sinistro Hearst afirma diversas vezes.
Deadwood: O Filme, no final das contas, é, em minha visão, um enorme, ainda que tardio, pedido de desculpas da HBO para David Milch e para seus espectadores por ter tomado a revoltante decisão de cancelar a série antes de seu fim natural. Não é o encerramento que os três anos de dedicação integral do showrunner mereciam simplesmente por isso não ser exatamente possível depois desse tempo todo, mas certamente é o que de melhor poderia ser feito, uma razão para comemorar e, acima de tudo, uma excelente desculpa para rever todos os cocksuckers juntos novamente na mítica Deadwood.
Deadwood: O Filme (Deadwood: The Movie, EUA – 2019)
Direção: Daniel Minahan (Dan Minahan)
Roteiro: David Milch
Elenco: Timothy Olyphant, Ian McShane, Molly Parker, Paula Malcomson, W. Earl Brown, Dayton Callie, Kim Dickens, Brad Dourif, Anna Gunn, John Hawkes, Leon Rippy, William Sanderson, Robin Weigert, Brent Sexton, Sean Bridgers, Geri Jewell, Jeffrey Jones, Franklyn Ajaye, Keone Young, Peter Jason, Cleo King, Gerald McRaney, Garret Dillahunt, Tony Curran, Jade Pettyjohn, Lily Keene, Don Swayze, Alan Ko, Noelle E. Parker, Leticia Lagutenko, Luke Patrick Dodge
Duração: 110 min.