Desde que a Fox foi adquirida pela Disney em 2019, no ano final da Fase 3 do Universo Cinematográfico Marvel, muitas pessoas pensaram que o próximo passo da franquia seria a integração dos mutantes e de outras propriedades no poder da Fox, como o Quarteto Fantástico, para a linha principal pós-Ultimato. A saída por trás dessa nova saga do UCM foi o conceito do multiverso, que é interessante ao mesmo passo que é confuso e bagunçado. Cinco ano depois da aquisição entre os estúdios, com produções decepcionantes nas fases 4 e 5, incluindo uma expansão televisiva medíocre no Disney+, finalmente estamos diante de Deadpool & Wolverine, a obra que prometia inserir os X-Men para os capítulos finais da segunda saga da franquia.
Não à toa, Deadpool (Ryan Reynolds) continuamente se proclama o “messias” da Marvel no filme – o que, na verdade, já foi provado errado ontem, considerando que o título é definitivamente de Robert Downey Jr., que irá retornar como o vilão Doutor Destino para “salvar” o UCM. No entanto, o roteiro de Reynolds, Rhett Reese, Paul Wernick, Zeb Wells e Shawn Levy é menos um olhar para o futuro da franquia, seja em caráter de expansão ou de integração, e muito mais uma celebração dos filmes da Fox e dos atores que assumiram os mantos dos heróis ao longo dos anos, como fica evidenciado pela montagem nos créditos. Seguindo a toada da Marvel (e de Hollywood como um todo) nos últimos anos, a história do longa está sempre olhando para o passado, com uma trama baseada em nostalgia e referências.
No início do filme, descobrimos que depois de Deadpool 2, Wade Wilson usa o dispositivo de viagem no tempo de Cable para viajar de sua linha do tempo, a Terra-10005, para a Terra-616, a “Linha do Tempo Sagrada”, onde conhece Happy Hogan (Jon Favreau) e pede para se juntar aos Vingadores, mas acaba sendo rejeitado. Nos próximos seis anos, Wade entra em uma espiral de baixa autoestima e autossabotagem, perdendo sua namorada Vanessa (Morena Baccarin) e se tornando um vendedor ruim de carros usados. O personagem volta à ativa quando é contratado pelo Sr. Paradox (Matthew MacFayden), um agente da Autoridade de Variância Temporal (AVT), tendo que, após uma ginástica de muita exposição narrativa, capturar um novo Wolverine (Hugh Jackman), já que o seu Logan morreu, para evitar a destruição de seu universo. O problema é que o Wolverine encontrado por Wade é considerado o pior de todas as suas variantes. A partir disso, o drama da história circula temas sobre sacrifício, confiança e relevância, colocando tanto o Mercenário Tagarela quanto o Carcaju em situações de redenção superheroica.
Não gosto tanto da introdução e da forma como o roteiro dão base para a aventura de Wade e Logan. Eu entendo as características Looney Tunes do Deadpool e como a metalinguagem em torno da mitologia do personagem abre espaço para um roteiro desamarrado de lógica, mas como a produção envolve conceitos de continuidade e desenvolvimento do UCM, falta um certo equilíbrio do texto. Por exemplo, nos quadrinhos os escritores de maneira geral “aprenderam” a utilizar o personagem, que em suas histórias mais contidas tem liberdade desenfreada e não precisa fazer sentido, mas que quando é utilizado em histórias de equipe, como da X-Force e dos X-Men, ou em grandes eventos de sagas, precisa ser “controlado”.
Os filmes anteriores do Deadpool são praticamente fora de qualquer tipo de cronologia ou vínculo com o universo da Fox, o que o beneficiou, mas que, aqui, dentro do UCM e suas diversas amarras, acaba enfatizando as deficiências do roteiro. Vejo isso logo na motivação de Wade querer se juntar aos Vingadores (de onde veio isso?) e também na maneira que a AVT é utilizada como uma desculpa narrativa, com pouco (para não dizer nada) de evolução ou esclarecimento da organização após o que foi apresentado em Loki. A participação da B-15 (Wunmi Mosaku) é superficial, só para dar um senso de que estamos no UCM, porque o departamento de Paradox é totalmente qualquer coisa. De maneira geral, o roteiro se apropria muito mal da mitologia estabelecida na franquia cinematográfica, focando demais no que foi feito pela Fox, além de pouco agregar para o futuro da Marvel nos cinemas.
A sequência entre Wade e Paradox no primeiro ato, em que tudo é explicado ao público, também evidencia outro problema do roteiro: a maneira como utiliza a quebra da quarta parede como muleta narrativa. Os comentários do Wade funcionam quando são observacionais, para fins cômicos (raramente até dramáticos) de metalinguagem e autorreferência, mas não quando são deliberadamente construídos para dar exposição, mover a trama de maneira inorgânica e principalmente esconder as limitações criativas do filme por trás de uma suposta autoconsciência. Ryan Reynolds é inegavelmente divertido, sempre sarcástico e irônico, mas penso que o roteiro exagera muito no artifício ao ponto da exaustão. Em diversos momentos me peguei pedindo para ele calar a boca igual aos outros personagens.
Passando do estabelecimento da trama, porém, penso que o roteiro tem boas ideias, mesmo que não tão bem executadas. Quando efetivamente chegamos na missão de Deadpool e Wolverine, a história ganha um corpo de buddy cop que veste bem a comédia de contrastes entre os personagens. Confesso que essa é, talvez, a pior performance de Hugh Jackman como Logan, mas o ator faz o papel em serviço do humor, incorporando uma versão raivosa do carcaju que dramaticamente é péssima, só que comicamente funcional. Apesar do exagero, muitas piadas do Deadpool causam altas gargalhadas, em destaque as críticas ao UCM dos últimos anos – eu particularmente ri muito quando ele diz que o Jackman vai fazer o personagem até seus 90 anos.
Muitos momentos lunáticos e irreverentes também são notáveis, como a profanação de túmulo do Logan, a participação do Mary Puppins ou a luta entre os protagonistas no carro. Chega a ser curioso como a ação em si é menos inspirada que muitas “esquetes” do filme. Shawn Levy até que lida bem com o CGI – as sequências de algo meio body horror com a Cassandra Nova (Emma Corrin) são ótimas -, com raras exceções de momentos com efeitos especiais estranhos aos olhos, mas ele é um cineasta definitivamente protocolar, que não tem a característica slapstick de Tim Miller (o cineasta que melhor comandou o humor físico do Deadpool), tampouco é criativo com a ação como o experiente David Leitch. O diretor se apoia demais na violência gráfica, bastante cansativa nessa terceira entrada do Tagarela, até por conta dos poderes regenerativos dos protagonistas.
Sobre a construção da aventura em si no Vazio, gosto do conceito por trás de uma dimensão esquecida de ideias e produções da Marvel, com a logo da Fox enterrada representando a derrocada do estúdio. Nesse sentido, as participações e referências são tematicamente funcionais para a trama, então os cameos não são exatamente o problema para mim. Penso que a forma que eles são utilizados que é problemática. A produção poderia ir em diferentes caminhos com o Vazio, seja uma expansão do multiverso com novos conceitos e variantes, o que não acontece, seja para fins cômicos, o que ocorre em diversas sequências divertidas, com destaque especial para a participação de Chris Evans como Johnny Storm. No entanto, as referências são majoritariamente feitas como uma forma de celebração.
Para mim, Deadpool & Wolverine segue os erros da Marvel em Pantera Negra: Wakanda para Sempre e Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa ao colocar as referências, fanservice, nostalgia, etc., como centro da trama e não como algo tangencial aqui para humor, fins temáticos ou até de simples dinâmicas da ação, e, pior, tudo em tom de homenagem para os atores, não os personagens. Eu não consigo entender porque a Marvel tem dado tanta importância para os intérpretes, afinal, porque deveríamos ligar para a Jennifer Garner, Wesley Snipes, Channing Tatum, Dafne Keen e afins? É a mesma coisa que aconteceu com Tobey Maguire e Andrew Garfield, em que os atores são celebrados, não o personagem.
Elektra, Blade, Gambit e afins são maiores para a história e para o universo do que qualquer um desses atores ou de produções ruins que infelizmente pessoas agora parecem adorar retrospectivamente, até produções que nunca aconteceram, como o projeto do Gambit com uma das piores escalações da história da Marvel com o Tatum. É um processo narrativo tão estranho… uma espécie de retroalimentação da Marvel, que fica celebrando produções passadas sem se importar com o desenvolvimento dos personagens e a evolução da mitologia da franquia, tornando o gênero dos super-heróis um parque temático com euforia infantil, um humor simpático e dramas esquecíveis. Será que o público ainda tem direito de criticar Martin Scorsese?
Se não concordam comigo, vamos olhar para fora do filme então. O anúncio de RDJ como o Doutor Destino é um exemplo fatal de desespero e de um estúdio focado na especulação da internet. Independentemente dele fazer um grande trabalho e de haver até lógica na escalação considerando os eventos de Guerras Secretas, é uma escolha pensada em nostalgia. Por que não poderíamos ter um novo ator como Wolverine, por exemplo? Parece que a Marvel está com medo de desagradar os que se chamam de fãs, mas que parecem sempre elogiar os filmes da Marvel que são mais referenciais e menos focados nos personagens. O fato desse filme ser só uma bobagem simpática que será muito mais elogiado do que o mais simpático As Marvels fala muito da direção narrativa do UCM manipulada pela audiência.
A verdade é que sou fã e não quero service. Em razão disso, Deadpool & Wolverine não me oferece muita coisa além de duas horinhas de um divertimento supérfluo com um roteiro guiado por referências e homenagens a atores e produções que em sua maioria deveriam ser esquecidas ou então até revisitadas, mas não através de um novo filme que, sim, cobro mais do que algo para “desligar o cérebro” ou algo para apontar o dedo à la Capitão América em Os Vingadores. Esses personagens merecem mais do que isso, em especial o Logan e os X-Men. Mas ei, se preparem para ver todo o universo da Fox nos próximos filmes. Mal posso esperar para assistir o Taylor Kitsch sendo homenageado pela sua interpretação como o primeiro Gambit…
Deadpool & Wolverine (Idem – EUA, 2024)
Direção: Shawn Levy
Roteiro: Ryan Reynolds, Rhett Reese, Paul Wernick, Zeb Wells, Shawn Levy
Elenco: Ryan Reynolds, Hugh Jackman, Morena Baccarin, Rob Delaney, Leslie Uggams, Karan Soni, Brianna Hildebrand, Stefan Kapičić, Shioli Kutsuna, Randal Reeder, Lewis Tan, Emma Corrin, Matthew Macfadyen, Aaron Stanford, Dafne Keen, Jennifer Garner, Wesley Snipes, Channing Tatum, Chris Evans, Jon Favreau, Wunmi Mosaku, Tyler Mane, Blake Lively
Duração: 127 min.