Dave Chappelle é considerado por uma grande quantidade de espectadores, críticos e artistas (majoritariamente norte-americanos) como o G.O.A.T. (Greatest of All Time) – traduzindo: melhor de todos os tempos – do Stand-up. Acho difícil e injusta a caracterização de “melhor”, mas, honestamente, eu consigo entender os motivos de Dave ter ganhado esse “título” do público. Como grande fã de stand-ups, eu diria que existe todo um panteão de comediantes revolucionários desta forma de arte ainda em ascensão e mudança de linguagem, de Richard Pryor e George Carlin até nomes recentes como o inovador Bo Burnham. E Chappelle certamente está no Monte Rushmore do Stand-up. Desde seus especiais na virada do milênio, sua histórica série de esquetes Chappelle’s Shows, até seu ressurgimento com o pacote de shows na Netflix, o comediante remodelou e ditou muito do que entendemos como Stand-up atualmente (principalmente no mercado americano). Mas não sem suas polêmicas.
E aí entra Encerramento, o recente e (possivelmente) último Stand-up do comediante, lançado na Netflix. Como uma espécie de despedida-testamento sem arrependimento misturada com uma leve carga de desculpas, o contraditório especial de Chappelle teve uma recepção calorosa, com louvores e críticas negativas na mesma medida. A grande polêmica é a seguinte: Dave criou uma espécie de rixa com a comunidade LGBTQIA+, que considera seu trabalho homofóbico, enquanto o próprio Dave de certa forma alimentou a controvérsia ao continuamente fazer piadas de gays, lésbicas e, principalmente, pessoas transgênero. No entanto, do meu ponto de vista, o comediante não bate de frente em uma posição de ataque preconceituoso, mas de maneira a criar um debate. Em tempos de cultura de cancelamento e militância exagerada, Dave Chappelle coloca sua carreira na linha para expor algo esquecido em uma sociedade cada vez mais intolerante: a discussão.
Piadas tiradas de contexto, matérias sensacionalistas e demandas de grupos e comunidades sociais que congelam a criatividade, são algumas das barreiras que os comediantes encontram em uma sociedade que ainda não sabe lidar com a comédia provocativa. Claro que existem artistas preconceituosos com estilos de humor de mau gosto, mas o que Chappelle infelizmente precisa fazer em Encerramento é explicar e defender sua arte e seus argumentos. É impossível afirmar se o comediante é ou não é preconceituoso (não acho que ele seja), mas o que eu posso dizer é que em sua carreira, o principal elemento em pauta de sua comédia observacional e satírica é o privilégio. Em Encerramento, assim como em todo seu corpo de trabalho, Chappelle faz piadas com qualquer tipo de comunidade, religião ou gênero com o principal intuito de discutir problemas raciais em um campo de privilégio. E se dentre todos esses grupos e etnias, ele apenas recebe criticismo exacerbado de uma comunidade, isso não seria… privilégio?
Você não precisa concordar ou apreciar o que Chappelle diz. Eu sei que eu não concordo com tudo. O comediante caminha em uma linha tênue da provocação, o que ocasiona certos “limites” do que se pode ou não tirar sarro de acordo com o julgamento de cada pessoa. No entanto, buscando um “encerramento” da sua arte, Chappelle procura a reflexão do privilégio não tanto em um debate racial como ele gosta de abordar em especiais passados, mas sim em termos de liberdade de discurso e artística. A história do rapper DaBaby, que manteve sua carreira intacta após matar um homem, mas agora se vê sendo cancelado por comentários homofóbicos, é um dos exemplos usados pelo comediante para discutir a disparidade e falta de lógica da tal cultura de cancelamento. DaBaby estava indubitavelmente errado em seus comentários preconceituosos, mas por que esse “acerto de contas” só veio em uma situação específica?
Aí está o debate, a reflexão e abertura de diferentes perspectivas de problemas sociais. Aí está o início de uma conversa sobre a diferença entre piada e ofensa, quando o facilmente ofendido ri do outro, mas não aceita o humor com seu próprio grupo. Aí está o papel de Chappelle como comediante e artista em criar o palco para haver essas discussões, utilizando a comédia como artifício e meio para dar entrada em assuntos polêmicos. O Encerramento é sobre o testamento (final?) de um artista verbalizando de maneira quase literal a sua linguagem para que o público entenda a diferença entre ironia e preconceito. Dave quer que sua audiência escute as entrelinhas, as sutilezas e o sarcasmo, e pare de pescar frases fora de contexto para postar no Twitter. A necessidade da existência de uma “explicação enquanto arte” de Chappelle, é quase um testamento em si da triste realidade intolerante que vivemos.
Por outro lado, tenho alguns problemas com a estrutura de Encerramento, desde a falta de dosagem entre comédia e explicação de Dave Chappelle, tornando o especial uma palestra em que o comediante às vezes não decide entre usar o humor para criar uma conclusão assumida do seu posicionamento ou (razoavelmente) se desculpar com histórias que lisonjeiam seu caráter, até várias piadas tematicamente deslocadas que o artista usa para deixar o clima mais leve. De certa forma, quase não é um Stand-up essencialmente cômico, considerando a bagagem dramática e explicativa de um especial que se assemelha a um resumo de carreira; um retrospecto para reflexão. Assim, considero o Encerramento o trabalho mais fraco de Chappelle em relação à experiência cômica, mas é provavelmente o seu especial mais reflexivo.
Afinal, se a validade de uma piada acaba quando ela é uma ofensa, o mesmo pode ser dito quando uma crítica se torna cancelamento. Dave Chappelle coloca em foco o privilégio do que se pode ou não cancelar. Para a surpresa de ninguém, muitas pessoas se ofenderam. E está tudo bem, desde que haja debate. Esse é o ponto de Dave, um comediante provocativo que sempre iniciou a discussão, e agora encerra o seu pensamento em seus próprios termos.
Dave Chappelle: Encerramento | EUA, 05 de outubro de 2021
Direção: Stan Lathan
Roteiro: Dave Chappelle
Com: Dave Chappelle
Duração: 72 min.