Prometido para 7 de abril de 2017, na quarta faixa da série The Heart, DAMN. só veio mesmo uma semana depois, em plena Sexta-feira da Santa, feriado cristão que relembra a crucificação de Jesus Cristo, condenado por se dizer filho de Deus e ser considerado uma ameaça para os poderosos e religião da Palestina na época. O estreitamento deste evento histórico e religioso com a situação de Kendrick Lamar e seus inimigos artísticos, mais uma parte da mídia que distorce ou interpreta mal o que ele diz, ganha aqui a sua crítica e defesa clássicas. Condenado, agora é a vez do artista se defender e, de alguma forma, expiar os “pecados”, pensamentos e sentimentos que cultivou desde TPAB (2015).
“Sempre foi eu contra o mundo/ Até perceber que era eu contra eu”. Esse trecho retirado de DUCKWORTH., última faixa de DAMN., sintetiza a ideia da obra. Trata-se de uma abordagem diferente de seu aclamado álbum anterior. Enquanto To Pimp A Butterfly era um retrato social sobre a cultura afro-americana, mostrada em diversas raízes musicais e dissecada através das letras, DAMN. se volta para o próprio artista. É uma amostra de como o ápice de seu sucesso reflete em si mesmo: seus medos, paixões, obsessões e fraquezas.
A mudança de produção é muito clara. Saem nomes ligados a jazz e soul (Flying Lotus, LoveDragon e Thundercat) e entra um time especializado em batidas, um tanto ligado ao mainstream (The Alchemist, 9th Wonder, BadBadNotGood, James Blake), embora o nervo central de ambos os discos permaneça intacto (caso de Sounwave, Dr. Dre e o chefe da gravadora, Top Dawg). Estamos diante de uma obra mais “crua” se comparada a trabalhos anteriores do artista, o próprio apelo por samples, distorções, beats e efeitos variados comprovam isso. E, claro, é perceptível que essa escolha cai como uma luva para o olhar intimista que Kendrick emprega sobre si mesmo, em uma viagem de dentro pra fora.
A experiência de seu quarto disco constitui uma avalanche lírica, visual e musical, a começar pela capa minimalista, “vermelha e abrasiva”, feita pelo design Vlad Sepetov (também de TPAB), com o “M” de “damn” fazendo chifrinhos na cabeça de Lamar. A capa gerou uma série de memes e críticas negativas diante de sua simplicidade, normalmente vindo de pessoas que não ouviram o que o próprio rapper disse em Humble, lançado em 30 de março: ele estava cansado de photoshop e isso é visto na capa do disco onde está essa música. Perfeitamente coerente. Sobre o tamanho do parent adviser (PA) da capa, o profissional disse:
DAMN. é uma forte jornada pela intimidade do King Kendrick, processo realizado junto a símbolos, personagens e passagens bíblicas, começando do título do álbum + o fato de ele ter sido lançado no dia da Paixão de Cristo. Sem contar que Kendrick, ou o seu eu-lírico, morre logo na primeira faixa, BLOOD., o que narrativamente faz o álbum ser um flashback desse personagem. Percebam que BLOOD. começa com um pequeno coro e a primeira frase do cantor é “So I was takin’ a walk the other day“, exatamente a última frase do disco. Na onda de teorias que se seguiram ao lançamento de DAMN., não é estranho que viesse à tona o pensamento de que ele morre no início desse disco (Paixão) para ressuscitar em um teórico álbum de domingo (Páscoa), exatamente como Jesus. No final de BLOOD. ainda temos um clipezinho da FOX News, com a repórter criticando a apresentação de Alright no BET Awards 2015. A faixa ainda expõe com um certo humor negro a Justiça cega que, em teoria, deveria medir corretamente as punições para as pessoas. A quantidade de negros mortos pela polícia e o descaso do sistema judiciário americano nesse aspecto, com certeza foi um baita gatilho para a composição.
DNA., com linha de guitarra interessantíssima de Matt Schaeffer, é ágil e impactante desde o começo e praticamente apresenta a temática que será dominante no disco: lealdade, intimidade e raízes culturais, isso também visto pela variedade sonora e moderna, “feita para rádio”, que ele, através de diferentes batidas, trouxe nesta faixa. A Imaculada Conceição é aludida na letra e ele faz um tipo de comparação dele mesmo com Cristo. Essas referências chegam a correr todo o álbum, além de representar o visual que temos do cantor às vésperas de seu novo lançamento (lembram-se da representação de A Última Ceia no clipe de Humble?).
A faixa seguinte, YAH., que parece musicalmente filha de TBAB, usa do apelido Kung Fu Kenny para declarar: “I’m diagnosed with real nigga conditions“, que pode ser um monte de coisas, a [suposta?] alienação dos rappers vistos pela mídia como “viciados em um único olhar” ou “fazendo caso por pouca coisa“. Aqui, ele parece colocar de lado a politização direta, olhando não exatamente para todo o aspecto social do indivíduo, mas para a pessoa e seus sentimentos, para problemas particulares, sendo a maioria, do próprio cantor. É possível perceber uma visita temática a Section.80 (2011) e good kid, m.A.A.d city (2012), agora mostrando a “evolução” daquele eu lírico.
ELEMENT. (com gravação e vocais adicionais de Brendan Silas Perry, Kid Capri e Zeke Mishanec) faz mais referências à Bíblia. Se YEAH. já falava sobre o livro de Deuteronômio e os “verdadeiros israelitas” (geograficamente, pessoas negras), aqui Kendrick “prega” o oposto do mandamento bíblico no Novo Testamento. Após a citação do “olho por olho” (a Antiga Lei) ele sustenta que se deve ir em frente, não dar a cara a tapa. Ele não precisa virar o outro lado, pois apanha mesmo sem virar. Isso em vista, seu eu-lírico precisa ir adiante, “ir para as cabeças”. O álbum é esse tipo de resposta “violenta” aos algozes modernos. E ainda há espaço para provocação:“Last LP I tried to lift the black artists / But it’s a difference between black artists and wack artists” — os incríveis versos finais até parecem diretos a Drake e Big Sean, levando em conta a “guerra fria” que vem sendo travada entre os rappers.
Exibindo sua própria alma e falando de um isolamento completo, FEEL. (com vocais adicionais de Chelsea Blythe e baixo de Thundercat) não é uma brincadeira. É uma confissão, uma amostra do cotidiano do artista, de sua relação com a música e até de algum sentimento de depressão. É como se ele tivesse todos os motivos para se sentir de mal com a vida e o mundo, sendo constantemente cobrado para fazer mais, sendo lembrado por falas polêmicas, sendo mal compreendido e interpretado, sendo colocado diante de novos inimigos (boa parte deles também rappers e também negros, homens e mulheres que em teoria lutam pela mesma “causa” ou buscam melhorias para a mesma comunidade). Nada espantoso que, após essa confissão, venha a faixa que cobra a verdade dos laços entre as pessoas. LOYALTY., com participação de Rihanna e vocais adicionais de DJ Dahi, é de uma honestidade imediata, sem mímicas do que pode ser uma relação leal, clamando por veracidade. Mas esta é também uma forma de ele olhar para sua própria lealdade diante da música, lembrar de sempre se manter fiel à sua essência. Ele fala que o que traz é “algo para durar dois milênios” (novamente, uma comparação com Cristo) e termina com um chamado para a humildade, a primeira preparação para HUMBLE., que vem mais à frente. O sample distorcido e invertido da introdução de 24K Magic, famoso single de Bruno Mars, se insere de forma quase orgânica em meio às batidas bem espaçadas e ao exemplar dueto entre Kendrick e Rihanna.
PRIDE. (com vocais adicionais de Anna Wise, Steve Lacy e Bēkonde) fala de um dos pecados capitais mais infames para o cristianismo, pois disputa o indivíduo orgulhoso com Deus. Aqui é exposta uma visão do artista maldito, sujo, pecador, orgulhoso, e nessa luta ele não sabe se escolhe ser “espiritualmente” ou materialmente relevante. É como se o víssemos lutando entre o seu estado emocional e físico ou material, fazendo referência a These Walls de TPAB, trazendo à tona a discriminação racial e os impedimentos sociais para negros. Como não se orgulhar de ser um vencedor após passar por tudo isso?
Isolada, HUMBLE. já tinha uma grande presença que ia além do excelente visual no clipe, mas aqui, ganha maior profundidade no contexto do álbum. Versos que já conhecemos do disco, como Nobody pray for me (FEEL.) e Wicked or weakness (BLOOD.) fazem ligação com esta faixa, uma espécie de alerta para o que ele — o artista orgulhoso — deveria ter feito: ser humilde. Mas a letra não se aplica apenas ao próprio Kendrick, mas a todo mundo. Muito se disse sobre os insultos a Big Sean e Drake nessa faixa e isso é verdade em partes, mas não é a única coisa que vemos representada. Esta é uma letra de entrega pessoal, no corpo, na sociedade, na mente. O casamento perfeito com a canção anterior.
Uma certa quebra no mergulho de realizações vem com LUST. que fala sobre o desejo de ser, de pertencer, de bem viver. Esta é uma das letras mais amplas para interpretação e mais instigantes do disco, sendo também a segunda maior música. É uma jornada histórica, de um eu-lírico que acorda várias vezes e tem que se preocupar com diferentes coisas, referindo-se a problemas do mundo onde vive, do regresso social (Donald Trump é um dos vilões dessa sociedade) às possíveis melhoras do futuro. No fundo, é um olhar sobre o estilo de vida de uma estrela do hip hop. A mensagem é clara: todo mundo tem vícios e todo mundo está sujeito a tentações que podem corromper e mudar a forma de olhar o mundo. O sexo parece ser a única coisa positiva dentre os muitos prazeres viciosos no meio de todo esse vendaval. A emenda disso é a romântica e consciente LOVE. (com a belíssima participação de Zacari e sua voz amanteigada) que aborda coisas comuns e essenciais de um relacionamento, como o que Kendrick tem com sua parceira de muitos anos, Whitney Alford.
A parceria com o U2, a mais inesperada do disco, vem em XXX., mergulhada em simbolismos religiosos e políticos, criticando o niilismo de algumas visões sobre o mundo contemporâneo e, claro, falando sobre a violência urbana/Estatal, a inimiga de todos os socialmente fracos em cada cidade, de cada país. O trap da faixa é basicamente uma aula para artistas que utilizam isso com enorme exagero e atropeladamente (viu, Drake?), com uma quebra final e perfeita inserção de Bono na última parte. Na sequência, FEAR. aborda os inúmeros medos do artista através de uma faixa que está entre os highlights do disco. O timbre grave abrindo a canção, questionando a Deus a razão de tanto sofrimento, já dita a atmosfera soturna. Em seguida, esses mesmos versos são emulados de trás pra frente a fim de simular esse terreno movediço e abstrato. Kendrick entrega versos que vão desde os medos presentes na infância, repletos de ameaças feitas pelos pais, até seus medos mais profundos, como a morte ou a queda no ostracismo. O rapper entrega uma das interpretações mais sinceras e emocionantes de sua carreira, afinal, estamos diante de um Kendrick fragilizado, admitindo até mesmo ter medo de perder a criatividade e o sucesso.
GOD. é uma eterna pergunta: qual seria a sensação de ser Deus? Essa faixa mostra K. falando sobre sentir-se diferente em meio à prosperidade, comparando, em retrospecto, com os baixos e tragédias de sua vida e de seu mundo-Compton, Califórnia. Ele sabe que, como um “Deus”, a quem se compara indiretamente, está sujeito a condenações e todo tipo de cobranças e pedidos, mas ele avisa que não vai deixar se abater ou culpabilizar por isso. Há muita coisa em sua vida para que ele invista nesse tipo de sentimento.
No desfecho, DUCKWORTH., Kendrick incorpora uma espécie de versão moderna de Bob Dylan, artista tão famoso por suas composições contando histórias. Aqui somos apresentados a um conto das ruas sobre quando os caminhos de Anthony Tiffith e Ducky se encontraram. O primeiro assaltando o restaurante onde o segundo trabalhava. A história contada de maneira brilhante através dos raps do artista fecha o disco com um plot twist: Anthony é Top Dawg, aquele que viria a ser dono da gravadora que Kendrick assinaria contrato anos depois. Já Ducky é ninguém menos que Duckworth, o pai de Kendrick. O artista aqui faz da história um divisor de águas para sua vida: “Porque se Top Dawg matasse Ducky/ Top Dawg poderia estar servindo pena/ Enquanto eu crescia sem um pai e morria em uma disputa de gangues”. Um final emocionante para um disco de densidade notável.
Se você chegou ao fim dessa análise é um admirador de Kendrick e, em algum momento, se perguntou o que o rapper faria depois do patamar absurdo alcançado com To Pimp A Butterfly, álbum que já é tido como um dos marcos, não apenas dessa década, mas da história geral do hip-hop. E recebemos como seu sucessor um trabalho diferente de tudo já apresentado por ele, como se movesse sempre adiante e se recusasse a olhar para trás. É o rapper refletindo sobre os frutos de sua fama de maneira genial, abrangendo todos nós, o público que o levou ao seu atual trono. Apesar do ótimo momento do hip-hop, tenha uma certeza: ninguém vem fazendo o que Kendrick fez em seus lançamentos até aqui. Se atualmente existe outro rei do hip-hop que não seja ele, eu não o reconheço.
Aumenta!: DNA. (Luiz) / FEEL. (Handerson)
Diminui!: —
DAMN.
Artista: Kendrick Lamar
País: Estados Unidos
Lançamento: 14 de abril de 2017
Gravadora: Top Dawg, Aftermath, Interscope
Estilo: Hip hop