Para quem conhece a segunda temporada da antológica American Crime Story, a intitulada The Assassinato de Gianni Versace, vai reconhecer a semelhante estrutura narrativa que Ryan Murphy traz para sua mais recente criação ao lado de Ian Brennan para a Netflix. Aliás, é como se ele desse continuidade a ideia de antologia sobre crimes reais nos EUA, mas agora focado em serial killers. Inicialmente pensado como minissérie, a premissa conta como objeto o canibal, pedófilo e assassino Jeffrey Dahmer.
É uma via de mão dupla que, embora tenham um bom argumento em sua proposta, os parceiros Brennan e Murphy não deixam de trazer para os holofotes, mais uma vez, quem era Dahmer. Ainda mais considerando a onda massiva de produções sobre true crimes, principalmente documentais, contudo, Dahmer: Um Canibal Americano chegou com um enfoque que traz uma discussão necessária no que tange o fascínio por histórias de crimes reais.
A série tem como acerto ao não romantizar os crimes, a vida e personalidade de Dahmer, interpretado por Evan Peters, mas busca explorar como ao longo de 1978 a 1991, o assassino canibal executou crimes hediondos e inescrupulosos, entre eles necrofilia, estupro, sem nunca antes ser efetivamente impedido e punido. Com poucas mudanças para fins de dramatização ao que o assassino contou em seus depoimentos, Murphy e Brennan conduz a produção por uma qualidade e cuidado notável em não exaltar os passos do serial killer e nem seguir a tendência de humanizar e relativizar uma história como esta, o que possibilita não ter em primeiro plano os diagnósticos sobre os transtornos psicológicos de Dahmer, e sim humanizar as suas 17 vítimas.
Por isso, o episódio inicial se faz fundamental para a proposta, embora muito pressupunha que o público saiba dos chocantes detalhes dos crimes, há uma dedicação assertiva em apresentar o modus operandi de Dahmer com aquela que foi a vítima que conseguiu fugir e chamar atenção da polícia local o que, consequentemente, levou a prisão do canibal: Tracy Edwards (Shaun J. Brown). A forma abordada na direção de Carl Franklin para sinalizar o perigo de Dahmer pode ser percebida na abertura: a cinematografia em plano médio evitando mostrar seu rosto, enquanto observamos ele lavar desleixadamente duas facas de serra, assume mais o tom de terror quando ele caminha por um corredor num plano geral, que vai se fechando conforme se aproxima de Glenda Cleveland (Niecy Nash). Os cartazes sobre homens negros desaparecidos, o fedor insuportável que exala do apartamento de Dahmer, só evidenciam o que está por vir quando ele vai a um bar gay apenas para atrair a próxima vítima.
Ter esse prisma é como a produção consegue transmitir o pânico e inquietação toda vez que Dahmer executa seu método, uma vez que a narrativa não segue uma linearidade, e mistura eventos por entre os treze anos de crimes cometidos. E no caso do primeiro episódio, imprime um efeito desesperador que é só percebido quando termina, visto a atmosfera sufocante que é construída sobre o modo que Dahmer buscava para deixar suas vítimas impotentes e sob seu controle. Num panorama geral, a direção da série preza por uma execução sensorial visando expor o terror ao qual as vítimas eram submetidas.
O ponto alto dessa abordagem, certamente se dá no sexto episódio, focado em Tony Hughes, vítima surda de Dahmer e vivida pelo estreante Rodney Burford. É uma escolha sensível da direção de Paris Barclay em narrar várias partes da trama pela perspectiva de Hughes; os diálogos, a relação familiar e o sonho de Hughes de ser modelo somam enfoque fora da curva, do molde que sempre apresenta as vítimas pelo ponto de vista do método de Dahmer em abordar, dopar, violar, desmembrar, armazenar e tentar transformá-las em zumbis.
Embora tenha poucos respiros por parte da narrativa fora do modus operandi de Dahmer, há um reforço constante em retratar aqui como a inoperância policial e racismo estrutural facilitaram as ações mórbidas do serial killer — como o chocante caso de Konerak (Kieran Tamondong) no segundo episódio. Além disso, Dahmer, que era um homem branco, loiro e de olhos azuis, tinha um apartamento em Milwaukee, Wisconsin, EUA, área reconhecida pelo alto índice de criminalidade, o que pontua o local escolhido para abordar precisamente homens em sua maioria negros e também asiáticos. Deixando isso escancarado, a produção também coloca nas entrelinhas a discussão racial diante desse cenário, sendo o desconforto e voz contra impunidade expressada por Glenda em mais uma performance fenomenal de Nash — sua primeira cena é ouvindo no noticiário sobre homens negros sendo espancados pela polícia local — sendo essencial ao dar vida a essa personagem (que soma duas vizinhas do assassino, Glenda e Pamela Bass) principalmente no episódio focado das inúmeras vezes que tentou denunciar Dahmer em vão às autoridades.
Com uma atuação intensa de Peters, que acerta ao adotar uma postura e expressão vaga, em alusão à maneira tranquila a qual Dahmer relatava seus crimes, chega um momento em que a organização narrativa da série começa a se mostrar enfadonha. Só a partir do nono episódio que ela se desvincula do recurso não linear, mas até antes disso, a figura de Dahmer era central nos relatos, seja ao apresentar brevemente a infância e adolescência, são claros os problemas conjugais dos pais e abuso de remédios da mãe, então, chega a ser demais quando a série se dispõe ainda a oferecer perspectivas extras, como no capítulo oito, episódio focado em Lionel Dahmer. Richard Jenkins está brilhante no papel, mas termina sendo apenas um acréscimo em excesso.
Renovada para mais duas temporadas, que no formato antológico irá trazer outros serial killers notórios dos EUA, é válido pensar aqui se Murphy e Brennan irão cair em mesmice ou contradição, o que não é difícil. Talvez o planejamento seja em lembrar e humanizar as vítimas, mas até onde o formato pode funcionar? Só aqui a dupla deu uma boa cutucada em como a cultura pop populariza as figuras desses assassinos através dos produtos derivados de seus crimes e histórias, em HQs, documentários, ou ao criar personagens inspirados, como Michael Myers e Leatherface — o próprio Dahmer ganhou um filme 1993, dois anos após sua prisão e um ano antes de sua morte.
Citando também Ed Gein e John Wayne Gacy, visando criticar a recorrência com a qual tais assassinos viraram fenômenos após serem finalmente presos, provavelmente Murphy também já deu dicas dos próximos objetos da antologia Monster — sendo Gacy aparecido também em AHS — o que irá render as mesmas discussões como esta: produtos sobre em crimes reais saturando, assassino ou vítimas humanizados? O Murphy é diferenciado por criar um produto que aponta uma tendência de consumo, fazendo também o seu?
Dahmer: Um Canibal Americano – 1ª Temporada (Dahmer – Monster: The Jeffrey Dahmer Story – EUA, 2022)
Criação: Ryan Murphy, Ian Brennan
Roteiro: Ian Brennan, David McMillan, Ryan Murphy, Reilly Smith, Janet Mock, Todd Kubrak
Direção: Jennifer Lynch, Paris Barclay, Clement Virgo, Gregg Araki, Carl Franklin
Elenco: Evan Peters, Richard Jenkins, Niecy Nash, Molly Ringwald, Michael Beach, Colby French, Michael Learned, Karen Malina White, Shaun J. Brown, Penelope Ann Miller
Duração: 8h54min (63 a 56 min ao longo de 10 episódios)