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Crítica | Da Terra à Lua, de Jules Verne

Um grandioso projeto.

por Luiz Santiago
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Quarto livro da série Viagens Extraordinárias e primeiro livro (de três) protagonizado pelo Clube do Canhão — ou Baltimore Gun Club, no original — Viagem à Lua chegou para o público em 1865, num momento da vida do escritor Jules Verne em que ele já tinha chamado a atenção de público e crítica, após o contrato com o editor Pierre-Jules Hetzel e a publicação de Cinco Semanas Num Balão, em 1863. É, portanto, um livro marcado por um estilo já conhecido e até esperado pelos leitores, onde o autor mescla às suas grandes ideias de fantasia e ficção científica, elementos reais dos mais diversos campos da ciência. Ao mesmo tempo que essa abordagem caracteriza a obra e lhe fornece um tipo muito peculiar de charme literário, pode atrapalhar a leitura em certos pontos, como explorarei mais adiante. O fato é que, neste livro, Verne está um pouco mais ácido e também muito confortável em apresentar um final mais maduro e inesperado.

O legado da literatura ficcional sobre a Lua é imenso, e aqui, o autor se ancorou em muitas dessas produções, fazendo citações diretas a pelo menos duas obras clássicas, já na primeira parte do volume: História Verdadeira, de Luciano; e O Outro Mundo ou os Estados e Impérios da Lua, de Cyrano de Bergerac. A citação de outros muitos autores e obras, tanto na ficção quanto na literatura acadêmica sobre o nosso satélite natural também faz parte da introdução do autor às primeiras visões que nos transmite sobre o peso histórico do experimento que o Clube do Canhão pretende fazer, produzindo e “enviando” para Selene uma bala muito específica de canhão, apenas porque a humanidade “pode” fazer isso.

Confesso que estranhei o início do romance, ambientado na Guerra de Secessão. Em poucos parágrafos, porém, o autor consegue justificar plenamente a sua escolha de espaço e tempo geográficos —  certamente não havia lugar melhor do que os Estados Unidos para criar o empreendimento de atingir a Lua com um balaço. A ironia mordaz com que Verne fala dos estadunidenses, de seu amor pelas armas e ideal de nação, desenvolvimento e civilização, faz as honras de crítica histórica sobre um padrão nacional que, seja ou não fruto de estereotipação, está aí para quem quiser ver e confirmar que é verdade. E pior: num sentido muito mais frequente e muito mais mortal. Por outro lado, o engenho do país também é destacado, assim como suas habilidades comerciais e “espírito aventureiro irresponsável”, uma espécie de elogio-alfinetada que também faz todo sentido. Entre a comédia e o cinismo, a explicação para o Clube do Canhão e a transformação da frustração do fim da Guerra Civil numa tentativa de viagem à Lua é um verdadeiro deleite, cheio de surpresas no meio do caminho.

Em se tratando de um volume das Viagens Extraordinárias, é claro que existe a exposição de muitos dados, cálculos (reais e hipotéticos), cientistas, produções e realizações da engenharia, matemática, física, química e diversas outras áreas do conhecimento, tudo em prol do andamento da aventura. Em parte do livro, o autor utiliza bem essas informações, e suas colocações acabam integrando a nossa curiosidade para o sucesso ou fracasso do projeto da bala de canhão — e depois, da viagem tripulada, quando o icônico Michel Ardan entra em cena. Ocorre que nem sempre esse lado científico é interessante no livro. Existem trechos aqui (e talvez o pior deles seja a descrição da soma de dinheiro enviado por vários países para financiar a “nave”) que cansam bastante e tornam enjoativos muitos pontos do volume.

Por sorte, esses são momentos da obra que conseguimos dar menor peso. Vence, aqui, a qualidade do restante da narrativa, que conta com um projeto científico/industrial e, de certa forma, engana o leitor quanto ao seu real andamento, pois não explora de verdade uma viagem à Lua, mas a sua longa preparação. É um tipo positivo de enganação, no entanto. Nos meses de preparo para a viagem, há muita divergência pessoal, teórica e prática que dá ao livro um quê de mistério diante de sua proposta (“eles de fato vão conseguir levar isso à Lua?“), o que sempre é interessante acompanhar num livro, já que o leitor toma essa suposta impossibilidade como um desafio do próprio autor. O final aqui é inesperadamente maduro para a proposta. Verne freou a fantasia e manteve a aventura em evidência, suspensa, aberta para que leitor decidisse o que aconteceria de verdade. Em sua conclusão, ele mescla um pouco de angústia com uma dose muito bem-vinda de esperança para o futuro dos bravos viajantes da Terra à Lua.

Da Terra à Lua (De la Terre à la Lune, trajet direct en 97 heures 20 minutes) — França, 1865
Autor: Jules Verne
Edição original: Pierre-Jules Hetzel
Séries: Viagens Extraordinárias #4 (Voyages Extraordinaires #4) e Clube do Canhão #1 (Baltimore Gun Club)
Ilustrações originais: Émile-Antoine Bayard, Alphonse-Marie de Neuville
Edição lida para esta crítica: Editora Principis
Tradução: Frank de Oliveira
200 páginas

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