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Crítica | Cyrano (2021)

Quando o clássico é elevado pelo musical.

por Iann Jeliel
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Poucos diretores conhecem e sabem trabalhar tão bem com as convenções do cinema clássico com histórias românticas de época quanto Joe Wright. Em Cyrano, o diretor responsável pelos excelentes Orgulho e Preconceito e Desejo e Reparação, adapta cinematograficamente a versão musical de Erica Schmidt para a peça Cyrano de Bergerac (1897), de Edmond Rostand, considerada como um dos maiores clássicos do teatro francês. Obviamente não é a primeira transposição para o cinema da história do narigudo que receia que a sua aparência física seja um impeditivo para que sua amada Roxanne corresponda o amor que sente por ela; mas é a primeira que vem num formato musical, não coincidentemente num ano em que os musicais voltaram a ter apelo popular. Longe de ser mais um entre muitos, Cyrano (por ser a adaptação de uma adaptação) tem um caminho facilitado, principalmente ao usufruir do envolvimento emocional particular daqueles presentes no projeto em teatro com o envolvimento emocional dos incluídos no projeto no cinema.  

Para contextualizar: Erica Schmidt é esposa de Peter Dinklage (simplesmente esplêndido no papel, atuando e cantando, quem diria!) e possivelmente já pensou as mudanças narrativas ao nanismo com base num histórico de vivência com a realidade da condição do ator. Isso, para o teatro. No cinema, o ator contracena com a Roxanne, vivida por Haley Bennett (ótima também), que começou a namorar com o diretor na mesma época do surgimento da peça. Ou seja, alinha-se o texto original com a crença de uma esposa à valorização do amor ao marido, independente de sua condição física com a direção nova de um recente apaixonado transbordando essa paixão em cada take que sua namorada está presente, dando a áurea necessária para acreditarmos, tanto no surgimento da paixão platônica de Cyrano por Roxanne, quanto no merecimento de Cyrano em viver esse amor sendo correspondido. E isso dá toda a vivacidade ao musical, fazendo com que sua escolha não seja apenas um canalizador para o caráter lírico do material original, mas também uma ferramenta de maior imersão ao escopo de épico ultrarromântico das imagens. Além do que, todas as músicas são excelentes e conduzidas com uma sinergia hipnotizante, num ritmo praticamente teatral, quase sem respiros.

Quando existem esses respiros, Wright sabe muito bem desenvolver as arestas desse triângulo romântico ‘bucólico’. Ele apresenta um exímio desenvolvimento do terceiro elemento: o soldado Christian (Kelvin Harrison Jr.). Christian que também se apaixona por Roxanne, mas não consegue expressar bem os seus sentimentos, recorrendo a Cyrano por uma ajuda com suas poesias, que aceita a proposta pela insegurança e pelo fato de não querer ver a amada com o preconceituoso Duque De Guiche (Ben Mendelsohn). É muito interessante o foco dado ao personagem, fazendo-nos ficar divididos entre torcer por ele e por Cyrano, justamente por espelhar sua insegurança intelectual com a insegurança física do Cyrano. Traz o questionamento óbvio da premissa da peça: “Qual a verdadeira face do amor? A atração física ou atração pelo caráter?”; para um campo mais dúbio, onde o lado belo (que não é tão fetichizado) também não deseja ser limitado à aparência física, deseja ter a própria personalidade. Faz todo sentido a escalação de um ator negro para interpretá-lo, pensando a raça naquele contexto de época, ali inserido sem uma afirmação de identidade, questionando seu papel social e sendo o elemento impeditivo para se  viver o romance impossível com Roxanne.

A dor de cada lado dessa “disputa” masculina é compreendida e, por mais que Roxanne não seja tão genuinamente explorada como personagem única, assim como os homens apaixonados por ela, existem os apontamentos precisos nas interações entre ela e Cyrano, ou entre ela e Christian que justificam a sua especialidade como mulher, destacando sua mentalidade empática e à frente do seu tempo que a poderia fazer corresponder ao amor de qualquer um dos lados. A potência dramática vai mais para o dilema de Cyrano com o amigo. Ambos se gostam tanto, que cada um só aceita assumir seus papéis – Cyrano ajeitando-o para a amada, Christian aceitando se passar por alguém que não é – por se confiarem plenamente. O ápice emotivo, para mim, vem muito da resolução dos dois, embora a verdadeira apoteose do filme realmente fique com a confirmação romântica. No geral, é um desenvolvimento conjunto de personagens muito bem organizado, de modo a dar profundidade à narrativa que poderia muito bem ser superficializada pelo caráter ágil do musical.

Cyrano é um musical cativante com um clima classicista e melódico de rara aceitação no cinema moderno de exigência pelo realismo verossímil. Nem por isso deixa de ser uma modernização ainda poética do conto, expurgando emoções em clichês do amor puro extremamente bem executados por um diretor que entende do gênero que está lidando. Uma grande surpresa de 2022.

Cyrano (Idem | EUA, 2021)
Direção: Joe Wright
Roteiro: Erica Schmidt (baseado na obra homônima de Edmond Rostand)
Elenco: Peter Dinklage, Haley Bennett, Kelvin Harrison Jr., Ben Mendelsohn, Monica Dolan, Bashir Salahuddin, Joshua James, Anjana Vasan, Ruth Sheen, Glen Hansard, Sam Amidon, Scott Folan, Mark Benton, Richard McCabe, Peter Wight, Tim McMullan, Mark Bagnall, Mike Shepherd
Duração: 124 minutos.

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