O uso de metáforas visuais no cinema fazem parte da concepção ambígua da imagem cinematográfica, em que não apenas provoca interpretações distintas, como determina fortemente para o espectador o distanciamento ou a aproximação emocional dentro da história contada. Em Curral, o novo filme do diretor pernambucano Marcelo Brennand, o primeiro ficcional após dois documentários, com sua temática das eleições municipais e a má distribuição de água na cidade de Gravatá no estado de Pernambuco, ascende ainda em seu filme métodos documentais de gravação que situam um suspense e um drama quanto ao realismo corrupto desse período eleitoral, ao mesmo tempo que invoca com o protagonista Chico Caixa (Thomas Aquino) a representação impulsiva e revoltosa da desesperança política num período nebuloso. Assim, o diretor simboliza sua obra em metáforas e figuração dos símbolos políticos em suspense, mas também entra no impasse de distanciamento emocional pelo uso de didático e cíclico da relação simbólico-realista do filme.
Tende-se a compreender a proposta do diretor e roteirista Marcelo Brennand quanto à medida de possibilidades para seu primeiro plano do filme, com a água se movimentando dentro de um Caminhão Pipa, que não há intenções dele que a dimensão realista proponha uma conclusão para a problemática da obra, pois poderia se aproveitar disso para desmontar a denúncia do curral eleitoral determinado a acontecer no filme, ou que enfaticamente mude a realidade documentada de Gravatá. Desse jeito, a catarse emocional não advém de uma vingança ou de atos gravados para que o espectador entenda necessariamente uma mudança, e sim algo mais interno, algo mais associado ao drama do protagonista e como em termos abstratos parece impossível mudar a política brasileira de uma cidade.
Por isso há uma certa justificação dentro do filme com imagens muito criativas, de contra-plongées (um “contra-mergulho” da câmera que observa uma cena e principalmente a personagem abaixo do nível dos olhos) acentuados, com personagens se afogando ou dando ênfase na posição que Chico Caixa, que se vê sem água em sua casa, como ponto determinante para mudanças na trama; ou até mesmo planos abertos do alto das casas de um bairro de Gravatá com bandeiras eleitorais coloridas — que dentro da direção de arte de Juliano Dornelles vão compondo brechas metafóricas de narrativa visual, no caráter realista das eleições. Nesse sentido, o ator Thomas Aquino (Bacurau, Todos os Mortos), que interpreta Caixa, tem a intensidade para refletir indignação palpável e se porta introspectivamente para a fotografia contemplativa e imersiva de Beto Martins. Logo, o âmbito do longa-metragem se caracteriza dinamicamente para se propor instigante no problema político e emocional, mas isso não compete plenamente uma administração estilística de Brennand como autor, tendendo a um vaguear emocional dentro da intensa representatividade determinista das eleições.
O protagonista, um tipo de “Robin Hood nordestino”, indaga o significado dentro do filme através de seu amigo candidato a vereador Joel (Rodrigo García), com o diretor trazendo a lógica metafórica como um transporte necessário para engatar a trama, usando efeitos sonoros e planos fechados com Chico para delimitar os pontos de virada. Se isso não soa mal engrenado entre o abstrato e o didático, é preciso se atentar comparativamente como as duas coisas são melhor relacionadas no estilo documental que é usado no filme para suspense ou imposição dramática para o trato realista, como quando o candidato Joel é levado por Chico a um assentamento, e é gravada uma conversa entre os moradores e os personagens que fazem campanha eleitoral. Tal cena não é feita com um plano e contra-plano comum, dando bem mais voz frontal aos moradores, como se cada reclamação deles em relação à política mentirosa, que promete e nunca cumpre, fosse captada em um documentário de pessoas reais indignadas.
Parece que Marcelo Brennand compreende muito bem como naturalizar a derrocada política, onde a esperança vai morrendo numa história, diante do que o público já conhece dos currais eleitorais, não necessariamente pela previsibilidade. Mas o diretor, enquanto desenvolve sem muito esforço a narrativa aonde a amizade de Joel e Chico se desmonta, ou como Joel se rende as promessas monetárias de parceria política, parece travado em dialogar com os suplementos emocionais sonoros e visuais, estilizados, para determinar o centro metafórico e de desenvolvimento introspectivo de Chico Caixa. Esta é a representação relativa ao contexto indignante das eleições, porém essa resolução dramática do personagem soa mais vaga e didática diante do realismo documental da história, mesmo que o drama de Caixa seja evidentemente conciso.
Assim, os simbolismos envolvendo o personagem de Caixa são bem mais suplementares do que complementares para a trama, como uma poética pouco palpável, apenas como um apontamento de centralização para o protagonista, provocando uma certa redundância em algumas cenas, parecendo até que o diretor se esquece de Chico. No entanto, a estilização do diretor aglutina as pequenas incongruências no tratamento da história, pois durante o filme, várias transições na montagem vão tentando normalizar esse aspecto metafórico que começa na primeira cena. Além disso, o trabalho sonoro contribui para a ambiguidade cinematográfica, já que traz o efeito impactante além do aspecto interpretativo da imagem, contribuindo para que o distanciamento do espectador. Desse jeito, a obra se mantém consistente em ritmo e lógica de transformação, embora sua poética ao relacionar a falta de água ao personagem Chico Caixa e ao contexto recorrente das eleições pareça “desnecessária”, acaba por ser um adendo diferencial, uma identidade que só não é vazia porque toda a construção de uma reafirmação de curral eleitoral passa automaticamente pelo crivo metafórico no filme da primeira cena à última.
Ademais, Curral é uma obra atenta às impossibilidades do trabalho com sistema político vigorante no Brasil. O espectador logo identifica os vícios do partidarismo, do flanquear eleitoral em prol do jogo monetário, da compra de votos e da regra de favores. Mesmo se ouvindo mais uma vez promessas eleitorais, reclamações e novas esperanças em candidatos de partidos virgens no filme, não necessariamente específica da região pernambucana, coloca-se principalmente esse discurso na compreensão de fagulha de um bom suspense, para um gênero cinematográfico e para um drama único de Chico Caixa, bem interpretado em representação para o público que anseia mudanças, sejam elas práticas, ou em reflexões metafóricas mais distantes.
Curral (Curral) – Brasil, 2020
Direção: Marcelo Brennand
Roteiro: Marcelo Brennand, Fernando Honesko
Elenco: Thomas Aquino, José Dumont, Rodrigo Garcia, Mayara Millane, Carla Salle, Rubens Santos, Fernando Teixeira
Duração: 87 min.